Por Bernardo de Gregorio
Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta
Ayahuasca, nome quíchua de origem inca que significa "cipó dos espíritos" ou “vinho das almas”, refere-se a uma bebida sacramental produzida a partir da decocção de duas plantas nativas da floresta amazônica: o cipó Banisteriopsis caapi (caapi ou douradinho) e folhas do arbusto Psychotria viridis (chacrona). Utilizada pelos incas e também por pelo menos setenta e duas tribos indígenas diferentes da Amazônia, o ayahusca é empregado extensamente no Peru, Equador, Colômbia, Bolívia e Brasil. Seu uso está se expandindo pela América do Sul e outras partes do mundo com o crescimento de movimentos religiosos organizados, sendo os mais significativos o Santo Daime, A Barquinha, União do Vegetal e Irmandade Natureza Divina, além de dissidências destas e grupos (núcleos ou igrejas) independentes que o consagram como sacramento de seus rituais.
Segundo algumas correntes de defensores do seu uso religioso e ritualístico, a ayahuasca não seria um alucinógeno, preferindo eles utilizar o termo “enteógeno” (do Grego: en- = dentro/interno, -theo- = deus/divindade, -genos = gerador), ou "gerador da divindade interna", uma vez que seu uso se dá em contextos ritualísticos específicos. No entanto, a opção sócio-cultural do usuário ou a tolerância religiosa de alguns países ao seu princípio ativo, o N,N-dimetiltriptamina (DMT), não altera sua classificação, uma vez que o objetivo continua sendo o de induzir visões pessoais e estados alterados de consciência por meio da ingestão de uma substância.
O DMT é metabolizado pelo organismo por meio da enzima monoamina-oxidase (MAO), e não tem efeitos psicoativos quando administrado por via oral. No entanto, o caapi possui alcalóides capazes de inibir os efeitos da MAO: harmina e harmalina (antigamente conhecida como telepatina), principalmente. Desse modo, o DMT fica ativo quando administrado por via oral e tem sua ação intensificada e prolongada, acarretando um aumento nos níveis de serotonina, efeito psicobiológico similar ao chamado “ekstasy” (MDMA). Não há evidências de dependência física, por não haver síndrome de abstinência conhecida, apesar de terem sido registrados episódios depressivos na abstinência. Porém, a necessidade intrínseca do uso da planta em todos os ritos para se atingir estados alterados pode ser entendida como manifestação de uma dependência psíquica bastante estimulada pelo contexto religioso e social. É sabido também que há uma tendência dos adeptos em aumentar a aciduidade aos rituais, seja por uma dependência químico-psíquica, seja pela adesão religiosa ao culto.
Não há dados científicos que indiquem riscos em relação à saúde física, havendo alguns estudos preliminares que apontam para a não-toxicidade. Porém, há constantes relatos de vômitos, diarréias e sudorese em alto percentual dos que a experimentam, o que sugere tentativas do corpo em expelir a substância. O uso contínuo parece favorecer uma tolerância química ao princípio ativo e conseqüente diminuição da intensidade dos sintomas. Em alguns casos, a ingestão pode levar a sensação de medo e perda do controle, levando a reações de pânico. Na maior parte das vezes tais reações passam junto com o efeito da bebida, sem necessidade de atendimento médico, mas foram descritos casos de intoxicação mais grave com síndrome de pânico e psicose induzida.
O consumo da bebida pode desencadear quadros psicóticos em pessoas predispostas a essas doenças, ou desencadear novas crises em indivíduos portadores de doenças psiquiátricas tais como transtorno bipolar e esquizofrenia. Há significativo risco de surtos psicóticos em indivíduos com predisposição genética. Pode ainda ocorrer persecutoriedade, fuga da realidade e alienação, além de dependência psíquica de moderada a grave. Foram descritas interações medicamentosas importantes com anti-depressivos, anti-histamínicos e benzodiazepínicos. Por causa da inibição da MAO causada pelo caapi, o uso de ayahuasca concomitante com a ingestão de produtos com elevadas concentrações de tiramina (uma amina metabolizada pela MAO), tais como banana ou queijos curados pode ser muito peigosa, levando a uma reação de intolerância ou a crises hipertensivas, dores de cabeça e até mesmo hemorragias cerebrais.
Por incrível que pareça, após 18 anos de estudos, o CONAD (Conselho Nacional Antidrogas) do Brasil, retirou o ayahuasca da lista de drogas alucinógenas conforme portaria publicada no Diário Oficial da União em 10/11/2004 e a ONU emitiu um parecer favorável recomendando a flexibilização das leis em todos os países do mundo no que se refere ao ayahuasca; apesar da substância DMT – N,N dimetiltriptamina ou (3 [2-(dimetilamino)etil] ndol), ser um potente alucinógeno integrante da Lista I - Substâncias Proibidas, da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e da Lista F2 – Substâncias de Uso Proscrito - Psicotrópicas, da Portaria SVS/MS nº 344/98. Esta substância é considerada psicoativa da classe das idolalquilaminas (e.g psicocilibina, psilocina, dietiltriptamina e LSD), podendo causar efeitos alucinógenos. Paradoxalmente as plantas em questão não constam em tratados internacionais e nem na Lista E – Lista de Plantas que podem originar Substâncias Entorpecentes e/ou Psicotrópicas, da Portaria SVS/MS nº 344/98.
O CONAD é órgão da SENAD - Secretaria Nacional Antidrogas, entes que delineiam a política brasileira referente às drogas, definem o que é substância entorpecente para fins de persecução penal e representam o Brasil junto à comunidade internacional nos foros deliberativos acerca de drogas (prevenção, tráfico, repressão, consumo, etc). É destes órgãos a decisão de permitir o uso religioso da substância psicoativa conhecida, genericamente, como ayahuasca (mariri, yagé, caapi, natema, daime, vegetal, etc) em rituais religiosos a partir da verificação de que este uso: i) é expressão de religião ancestral, de origem indígena e anterior à formação da cultura ocidental judaico-cristã; ii) não há abuso nem dano à saúde mental e física em decorrência de seu uso religioso; iii) contribui para a afirmação da identidade cultural brasileira e, em especial, da Amazônia. No entanto, o uso urbano do ayahuasca é cada vez maior, em contextos que nada tem a ver com a “expressão de religião ancestral”. Muito pelo contrário: a maioria das religiões e seitas utilizam o ayahuasca em sincretismos que associam as tradições amazônicas a conceitos judaico-cristãos, africanos e até mesmo “new age”, incluindo culto a extra-terrestres!
"Ainda que exista uma tradição de consumo do ayahuasca em vários países da América do Sul, apenas no Brasil se desenvolveram religiões de populações não-indígenas que usam esta bebida. Religiões que usam esta beberagem reelaborando antigas tradições dos sistemas locais a partir de uma leitura influenciada pelo cristianismo", observa a antropóloga da Unicamp Beatriz Labate. O daime, para Mestre Irineu, ligava-se diretamente ao sacramento cristão, considerado como o sangue de Cristo. "O Santo Daime preserva o caráter sagrado de festa, dança e música, por meio dos hinos que os daimistas cantam no rito, do catolicismo popular. No seu panteão juntam-se santos católicos, figuras do universo afro-brasileiro e seres da natureza, como estrelas, o sol, a lua. Tudo misturado com doses de kardecismo, dentro de um espírito militar, de ordem e disciplina, que exige o uso de uniformes etc.", conta Beatriz. De início restritas à região amazônica, as religiões ayahuasqueiras hoje estão em todo o Brasil e em 20 países do globo, com direito a dissidências, como o Alto Santo e o Cefluris, ambas nascidas do Santo Daime, após a morte de Mestre Irineu. O Cefluris tem a particularidade de associar, ao daime, o uso da Cannabis sativa (maconha), levada pelos hippies nos anos 1970 ao culto e associada à Virgem Maria. "Inovações" como estas foram responsáveis pela ruptura entre os vários cultos que, apesar de comungarem dos mesmos credos e ritos, pretendem se diferenciar uns dos outros pelo ataque a supostas "impurezas" que seus diferenciais teriam no preparo ou no uso, não ritualístico, do ayahuasca.
Ao nosso ver, dois são os principais problemas no uso do ayahuasca: o primeiro deles é o caráter evidentemente psicotrópico alucinógeno da mistura das duas plantas que pode desencadear doenças psíquicas graves como surtos psicóticos esquizóides ou maníacos em pessoas predispostas ou levar ao abuso ou à dependência da substância. O segundo problema é criado pela alegada “cura” de determinadas doenças que os rituais se arvoram, o que pode não apenas ser enganoso, mas também retardar ou impedir que tratamentos efetivos possam ser instituídos. Tendo em vista estes dois problemas, o incentivo ao uso deste chá, com ou sem fins religiosos, é bastante perigoso e a divulgação de material, como abundantemente se encontra na Internet, que afirma a “inocuidade” das substâncias do ayahuasca deveria ser criminosa!
Na Carta de Princípios das entidades religiosas usuárias do chá hoasca as ditas entidades se comprometem incondicionalmente em não comercializar o chá, mesmo a seus adeptos. No entanto, na prática, o que ocorre é rotineiramente há a cobrança de uma “taxa” para a participação de um destes rituais com uso de ayahuasca. Sendo prática proibida pela legislação brasileira (artigo 284 do Código Penal brasileiro), o curandeirismo - prática de prescrever, ministrar ou aplicar, habitualmente, qualquer substância, bem como usar gestos, palavras ou qualquer outro meio (não inserido na prática médica) para cura ou fazer diagnósticos sem ter habilitação médica - deve ser evitado pelas entidades religiosas signatárias. O chá hoasca deve ser utilizado nos termos do que está exposto nesta Carta de Princípios, sendo os benefícios daí advindos tratados exclusivamente do ponto de vista espiritual, sem alardes publicitários que induzam a opinião pública e as autoridades a equívocos. Mais uma vez, não é isso que ocorre na prática: a divulgação de efeitos de “cura” do ayahuasca é notória! Diz a lei que “exercer o curandeirismo: i) prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; ii) usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; iii) fazendo diagnósticos, pode levar a pena de detenção de seis meses a dois anos e se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa”.
A mesma carta ainda grifa que “grande parte das controvérsias e contratempos em torno do uso do chá hoasca - inclusive junto às autoridades constituídas - decorre dos equívocos difundidos pelos veículos de comunicação. Isso impõe, da parte das entidades usuárias, especial zelo no trato das informações em torno do chá hoasca, aí incluídos rituais, preparos e doutrinas”.
Outra grande controvérsia são os efeitos da hoasca na gestação. Com o objetivo de investigar os efeitos do chá na gestação e no desenvolvimento de crianças nascidas de mães que o utilizaram durante a gravidez, um grupo de profissionais de saúde da UDV ligados ao Demec realizou na cidade de Fortaleza, Ceará, um estudo piloto retrospectivo, mas os resultados obtidos ainda necessitam de avaliação metodológica crítica e tratamento estatístico adequado para serem publicados.
Segundo os relatos dos usuários, a ayahuasca produz uma ampliação da percepção que faz com que se veja nitidamente a imaginação e acesse níveis psíquicos subconscientes e outras percepções da realidade, estando sempre consciente do que acontece - as chamadas mirações. Os adeptos consideram esse estado como supramental "desalucinado" e de "hiperlucidez". Caberia ainda finalmente a questão: de fato é necessário o uso de uma substância psicoativa para que o ser humano atinja a divindade? Não poderíamos nós, apenas contando com nosso organismo inalterado, desenvolver estes níveis superiores de consciência? Na verdade há diversas outras religiões e filosofias que afirmam que sim, como por exemplo todas as que se valem da prática do Yôga, em diversos estilos, e da Meditação Transcedental. Não são estes caminhos no mínimo mais confiáveis, mais sudáveis e mais naturais?