30 agosto 2009

A Idade do Ego

Bernardo de Gregorio
Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta



No Século XX Andy Warhol disse que todo mundo teria seus quinze minutos de fama. De fato todos tiveram. O problema é que parecem ter gostado da tal fama e agora, no Século XXI, agem como se ainda vivessem estes tais quinze minutos. As pessoas se embriagam de si mesmas, numa “ego trip” surreal e a Internet colabora em muito para isto, possibilitando que você “broadcast yourself”, blogando sua vida no Twitter em tempo real, tornando-se astro instantâneo de si mesmo. Tudo bem que isto é a democratização dos meios, mas está havendo algum exagero nisso, ou sou apenas eu que noto?

É impressionante como hoje em dia as pessoas se dão o direito de baixarem decretos por sua própria conta e risco e imaginam que pelo simples fato de terem solenemente declarado “eu não gosto disto” ou “eu acho isso”, pronto! A realidade e todos os seres do mundo se dobram frente sua nobilíssima opinião. Ninguém, precisa mais embasar sua fala em argumentos, autoridade ou conhecimento. Basta falar e já está. Vivemos a idade do “achismo”.

“Quem sou eu?”, “até onde vai o que eu sou e onde começa o outro?”. Na atualidade, estas perguntas que sempre afligiram a Humanidade foram todas resumidas num simples “e interessa?”. Nossa sociedade consumista é egocêntrica, egodirigida e egocrática. O que há é que todos têm muito medo de se relacionar e se escondem em seus mundinhos herméticos e individuais. O egocêntrico procura se isolar do mundo através de um universo próprio onde geralmente está cuidando de um problema psicológico interno muito mais importante do que as agruras da Humanidade. Como “Narciso acha feio o que não é espelho”, a regra é “concorde ou será excluído”.

Narciso era uma criança tão bela que fez com que sua mãe se preocupasse. Sim, porque na Grécia Antiga a beleza não era considerada uma virtude, mas uma espécie de maldição. Por mais belo que alguém possa ser, esta é obrigatoriamente uma beleza mortal, passageira e funciona sempre como uma afronta à beleza eterna dos deuses. Em sua preocupação, a mãe de Narciso procurou o oráculo que revelou um futuro ambíguo para a criança: se ele jamais visse sua própria imagem, seria feliz. Narciso então cresceu sem nunca saber de sua impressionante beleza.

Apesar dos inúmeros assédios (como se pode imaginar), Narciso era solitário e tristonho e não conseguia se relacionar. Um dia, tendo ido pegar água numa fonte, ao debruçar-se, viu seu reflexo pela primeira vez. Deslumbrado com tamanha beleza que se descortinava, largou se cântaro e ficou observando por horas, sem nem desconfiar de que se tratava de sua própria imagem refletida.

Naquela fonte habitava uma ninfa de nome Eco. Eco havia sido amaldiçoada pelos deuses em outro episódio e desde então não podia mais falar espontaneamente: apenas repetia as últimas palavras que lhe foram ditas. Eco vê Narciso ali embevecido com as águas da fonte e se interessa por aquela bela figura. Tenta chamar-lhe a atenção sem sucesso. “Saia daqui! Não lhe quero”, disse Narciso; a que Eco respondeu: “...lhe quero, ...lhe quero”. O triste Narciso, sem nunca notar que na realidade estava apaixonado por si mesmo, num impulso atirou-se n’água tentando alcançar a bela imagem e morreu afogado. Eco desapareceu no ar de tristeza e hoje em dia, quem passa por aquela fonte ainda pode ouvir a pobre Eco repetindo as últimas palavras que foram ditas.

Inspirado neste mito, foi criado o termo “reverberação narcísica” para descrever um estado psicológico peculiar e doentio de uma pessoa embriagada de si mesma. Não se trata aqui do narcisismo comum, quando alguém vive do auto-elogio, mas sim de alguém triste e solitário que nem ao menos sabe que está apaixonado por sua própria imagem: uma ilusão, uma miragem. Seus relacionamentos se resumem a pessoas que são ecos de si e repetem sempre as últimas palavras que são ditas.

É neste estado de reverberação narcísica que nossa sociedade se encontra: alguns somos Narcisos, outros somos Ecos, todos somos infelizes e solitários. Solitários acompanhados, é certo. Solitários na multidão, mas inevitavelmente solitários. O homem contemporâneo sofre de solidão crônica. O universo gira em torno de nossos umbigos. Os medos crescem e tomam conta da totalidade de nossas vidas. Pânico, depressão, angústia. Somos personagens sufocadas por papéis sociais, pela moral, pelo trabalho, pelo vazio, acima de tudo, pelos nossos próprios egos.

O homem atual, apesar de toda tecnologia, apesar dos avançados científicos, apesar do progresso, sofre de falta de calor. Falta-lhe o calor do contato humano, o calor da afetividade real, o calor da espiritualidade verdadeira. O Super-Homem é um esfomeado. Tenta, em vão, aplacar sua fome com uma profusão de estímulos absolutamente ineficazes: o álcool, as drogas, a comida, o consumismo, o excesso de trabalho, o status social, o sexo, a internet. O Super-Homem é um Tântalo moderno, que já não possui a capacidade de se saciar.

João Carlos Antunes em sua “Metafísica do Património” nos diz que “o património tem que ver com o terreno, e, por consequência, com essa irrevogável transitoriedade de tudo o que se concretiza em matéria: ‘tu vens do pó e em pó te tornarás!’. Considerado enquanto conjunto de bens terrenos, isto é, ‘ligados à terra’, existe sempre subjacente, uma infra-estrutura relacional de causa e efeito entre poder e ser em todas as suas vertentes e combinações imagináveis. Atribuímos frequentemente uma importância decisiva ao nosso conceito de posse enquanto extensão consequente de vida; mas também dela subsequente, enquanto faces de uma mesma moeda, numa inextricável promiscuidade do poder e do ter, do possuir para ser. Diremos então que neste domínio, inseparável da vida é a posse, porque na afirmação da vida terrena existe a ansiedade da morte, a ansiedade do limite para além do qual é o caos, o nada, a astenia. Mas também, por paradoxo, porque é justamente neste limite, ou seja adentro deste limite, que nos confirmamos enquanto indivíduos, ainda que por vezes de forma equívoca, narcísica, nebulosa, turbilhonante, é certo, mas ainda e assim mesmo, é adentro dele e nele que nos conseguimos consubstanciar. Temos portanto o limite como nosso reflector, como nossa referência, reverberação de nós mesmos, enquanto outros, e dos outros enquanto nós”.

Podemos deduzir que é através da reverberação narcísica que se dá a valorização da posse e, portanto, abre-se uma brecha para aumentar o consumo. Desta forma se soluciona o mistério: eis porque nossa sociedade valoriza e incentiva tanto a reverberação narcísica. A conta é simples: reforce o ego de uma pessoa e ela precisará de mais reforço para sentir-se bem. Associe este reforço ao patrimônio e ela se tornará materialista. Direcione este materialismo para bens de consumo e ela comprará mais.

Um desejo é algo desvinculado da realidade, sem maiores implicações; uma necessidade, justo ao contrário, é uma urgência imperiosa que se impõe como condição de sobrevivência a um indivíduo e uma vontade, típica do Ser Humano, é a livre expressão deliberada na realidade concreta da alma de um indivíduo autoconsciente. Porém, atualmente, é dificultoso que se saiba quais destes desejos, destas necessidades e destas vontades são genuínos e quais foram simplesmente implantados em nossa mente através de um sutil mecanismo subliminar de pura e simples propaganda. Isso mesmo: um “desejo”, uma “necessidade” ou uma “vontade” totalmente fictícios podem ser implantados em nossa mente, sem que ao menos tenhamos consciência de que isso ocorreu.

Precisamos de água, comida, abrigo e pouco mais. Porém, será que um Ser Humano pode se contentar com a satisfação dessas necessidades? Também não fazem parte destas mesmas necessidades básicas humanas o contato interpessoal, por exemplo, ou uma noção de Espiritualidade ou ainda a possibilidade da expressão? Valendo-se desta área nebulosa que existe na alma humana, o assim chamado Marketing pode criar “necessidades” que antes não existiam ou transformar necessidades reais em necessidades absolutamente fictícias. Igualmente a Propaganda é capaz de direcionar estas pseudo-necessidades e ao redor delas produzir desejos que por fim geram “vontades” que em última análise não refletem a Vontade do próprio indivíduo, mas refletem a vontade de um sistema que as implantou em sua alma.

Valendo-se então deste jogo psicológico muitíssimo eficaz, porém discreto, a Propaganda e o Marketing fazem com que as rodas da sociedade de consumo do Século XXI continuem rodando e fazendo funcionar esta máquina desgovernada que se alimenta de carne humana. Tal qual um Mefisto contemporâneo, o consumismo troca prazeres fictícios pela posse de nossa alma imortal. Lestrigões, banqueteai-vos enquanto há tempo! Chafurdai nas excrescências da sociedade humana e saciai vossa sede de sangue hoje, pois talvez amanhã Nêmesis já terá vos levado a todos para uma existência menos abundante num local onde as vítimas sejam menos ingênuas.

Se ao menos por um único instante pudéssemos perceber que a felicidade está dentro de nós e não naquilo que elegemos como objetivo de vida. Se pudéssemos resgatar este centro divino, o verdadeiramente humano, este calor. Se pudéssemos, abriríamos mão de bom grado de todo o avanço tecnológico, de toda sociedade e suas estruturas morais , todo o conhecimento contemporâneo, e seriamos felizes, ao sermos criativos, lúdicos e espontâneos. Crianças. Humanos que humanizam seres humanos e o mundo à sua volta. As atividades humanas só são validas quando feitas com calor humano. Se compreendêssemos isso, aí sim, este seria um admirável mundo novo e não estaríamos errantes e a ponto de nos destruir e ao planeta que habitamos. Se compreendêssemos...