30 outubro 2014

Não me venham com sacis!






Eu não tenho nada contra este simpático trixter do nosso folclore, mas o deputado federal Chico Alencar, (PSOL - RJ) e a vereadora de São José dos Campos Ângela Guadagnin (PT - SP) tiveram a estranha idéia de criar o "Dia do Saci", com o objetivo de resgatar figuras do folclore brasileiro, em contraposição ao "Dia das Bruxas", o Halloween, tradicionalmente comemorado no dia 31 de Outubro. O "Dia do Folclore", 22 de Agosto, já existe desde 1965 e me parece no mínimo redundante haver um dia só para o Saci. Não há nenhuma tradição que apoie este festejo nesta data; porém, em São Luiz do Paraitinga (SP) o Dia do Saci já virou uma data típica local e é muito comemorado em uma festa que dura quase duas semanas, tendo inspirado festejos similares em cidades vizinhas. 

O Saci-Pererê tem sua origem presumida entre os indígenas da Região das Missões, no Sul do país, de onde teria se espalhado por todo o território brasileiro. Na Região Norte do Brasil, a mitologia africana o transformou em um negrinho que perdeu uma perna lutando capoeira, imagem que prevalece nos dias de hoje. Herdou também, da cultura africana, o pito, uma espécie de cachimbo e, da mitologia europeia, herdou o píleo, um gorrinho vermelho usado para oferecer poderes sobrenaturais. O Saci é considerado uma figura brincalhona, que se diverte com os animais e pessoas, fazendo pequenas travessuras que criam dificuldades domésticas, ou assustando viajantes noturnos com seus assovios, bastante agudos e impossíveis de serem localizados. Assim é que faz tranças nos cabelos dos animais, depois de deixá-los cansados com correrias; atrapalha o trabalho das cozinheiras, fazendo-as queimar as comidas, ou ainda, colocando sal nos recipientes de açúcar ou vice-versa; ou aos viajantes se perderem nas estradas. O mito existe pelo menos desde o fim do Século XVIII.

Manter vivo nosso folclore é uma muito boa idéia, mas a parte mais esdrúxula desta história toda está na pretensa "contraposição" ao Halloween. Ora, por quê? A festa, que é popular nos Estados Unidos, chegou às crianças brasileiras por meio de programas televisivos e filmes de cinema. Diz-se comumente que o propósito é combater (mais) esta invasão cultural norte-americana, mas é preciso que se diga que o Halloween, apesar de bastante festejado nos países da América do Norte, não é de modo algum uma festa originária desta parte do mundo.

O nome Halloween deriva de "All Hallow’s Eve", a Véspera do "Dia de Todos os Santos", comemorado em 1o de Novembro. No entanto, a origem do Halloween remonta às tradições dos povos que habitaram a Gália e as ilhas Britânicas desde antes de 600 aC: os Celtas. No dia 31 de Outubro, a meio caminho entre o Equinócio de Outono e o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte, é celebrado o "Samhain" (pronuncia-se "Sou-ein") ou "Samonios", o Ano Novo Celta, marcando o início da estação obscura da Deusa (a Natureza), que inicia sua descida aos mundos inferiores. Nesta data, os espíritos dos mortos voltam para visitar seus antigos lares e seus familiares, para buscar alimento,  se aquecer no fogo das lareiras e para guiar os que precisavam seguir rumo ao Outro Mundo. Na hora do crepúsculo, o véu que separa os mundos encontra-se mais fino, revelando em meio às brumas sagradas, a divina presença dos elfos.

Samhain ocorre no pico do Outono. É o tempo do ano em que o frio cresce e a morte vaga pela Terra. O Sol está enfraquecendo cada vez mais rapidamente, a sombra cresce e as folhas das árvores estão caindo, numa preparação para o Inverno que chegará. Essa é a última colheita, o tempo em que os antigos povos da Europa sacrificavam seu gado e preservavam sua carne para o Inverno, pois esses animais não podiam sobreviver em grande escala nesse período do ano devido ao frio vindouro. Só uma pequena parte, os mais viris e fortes, era mantida para o ano seguinte. 

Samhain é a noite em que o Velho Rei morre e a Deusa Anciã lamenta sua ausência nas próximas seis semanas. O Deus finalmente morre, mas sua alma vive na criança não-nascida, a centelha de vida no ventre da Deusa. Isto simboliza a morte das plantas e a hibernação dos animais, o Deus torna-se então o Senhor da Morte e das Sombras. Samhain é um festival do fogo e é a entrada para a parte sombria e fria da Roda do Ano. É em Samhain que as fogueiras são acesas para que os espíritos do outro mundo possam encontrar os caminhos para partirem para o País de Verão. Oferecem-se alimentos para a passagem dos espíritos e acende-se uma vela para iluminar seu caminho. A imagem da vela dentro da abóbora tem esta origem.

Os praticantes de diversas religiões neo-pagãs celebram ainda hoje o Samhain, como por exemplo o Druidismo e a Wicca. Ele é celebrado no dia 31 de Outubro no Hemisfério Norte e 1o de Maio no Hemisfério Sul e essa diferença existe porque as estações são invertidas de um hemisfério para o outro e as religiões celtas sempre privilegiam a Natureza e suas estações, ao calendário patriarcal. Então surgem aqui questionamentos que ao mesmo tempo podem reconciliar Saci e Halloween: o Dia do Saci, para contrapor o Halloween, não deveria ser então 1o de Maio? Ou por outra, por que não deixamos o Saci ficar em 31 de Outubro e mudamos de vez o Halloween para 1o de Maio?...

Agora, uma coisa é certa: tanto Dia do Saci, quanto Halloween, não podem ser comemorados apenas "por comemorar", porque em escolas acabam ocupando o tempo de aulas importantes e não acrescentam nada na formação das crianças. Não adianta celebrar uma data na escola que não represente nada para a realidade do estudante. É preciso explicar como cada festa surgiu e contextualizá-la para que os alunos criem uma identificação. Só assim a comemoração fará sentido. Vista por este ângulo, a somatória das duas festas pode ser muito útil: hoje, com a globalização, as crianças brasileiras também têm acesso ao Halloween e isso lhes permite construir conhecimentos a respeito do mundo e da forma como outras crianças, que vivem em outras partes, brincam e divertem-se; mas a cultura nacional não é descartada e o Saci é apresentado em aulas específicas que tratam da cultura da infância brasileira: tradições, músicas, cantigas de roda, brincadeiras, poesias e histórias.


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