26 abril 2014

Carne!





Você já parou para pensar na realidade da carne? Na existência objetiva do mundo orgânico? A despeito de nossa íntima familiaridade com a existência no mundo através da matéria orgânica, um simples afastamento é capaz de revelar um reação de profunda estranheza ou até mesmo de um certo asco. O mundo orgânico existe através de fluidos e tecidos vivos que em suma não deixam de ser nojentos. Coisas vivas (e quanto mais "vivas" o forem) são nojentas. Coisas inanimadas (e quanto mais inanimadas o forem) são tranquilizadoras. A morte, transição entre estas duas existências, é marcada pela decomposição de tudo o que é orgânico de volta ao inorgânico e esta passagem é a mais repulsiva de todas.

A grosso modo, a vida resume-se neste planeta em cadeias de carboidratos, cadeias proteicas e algumas cadeias lipídicas. Todas estas substâncias juntas, unidas ou não, criam este aspecto viscoso, denso, amolecido e pegajoso. Se adicionarmos a isto o aspecto fundamental empírica e psiquicamente ligado à vida, em especial à animal (do Latim "anima", "alma"), que é o movimento, temos a imagem de carne que se move, arrastando-se sobre uma superfície ou debatendo-se em convulsões. Esta é a imagem do "anseio". Os vegetais não se debatem porque são autossuficientes, vivem de luz: apenas abrem-se para o mundo e sorvem sua nutrição. Os animais precisam encontrar energia fora de si e para tal é obrigatório que busquem, movidos pelo anseio, pela falta, pela fome, em busca de substrato para manter-lhes a carne.

Sendo assim, a alma ("anima") é formada básica e primordialmente pelo anseio: esta "falta" a que precisamos preencher. O interior dos animais é aberto, há espaço, cavidades. Estas cavidades são conhecidas como "luz" (apesar de na prática encontrarem-se nas trevas) e precisam ser preenchidas: ar, água, comida, sangue... A Luz dos vegetais (esta sim, pura e verdadeiramente luminosa) está no céu e caminha desde as estrelas até suas verdes folhas. A luz dos animais está dentro e grita de fome, impulsiona-os para o desejo. A voracidade é nossa marca. Mas não somos amebas, não nos contentamos com incorporar (colocar para dentro do corpo) partículas carbo-lipo-proteicas. Nós queremos mais! Nós nos preenchemos dos vazios dos instintos, de fomes diversas: materiais e abstratas.

Os instintos humanos são esta base da nossa alma, nossa porção animal. Os conceitos incorporados no que se conhece hoje como "Os Sete Pecados Capitais" são uma classificação de condições humanas identificadas e comuns: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e orgulho. Basicamente instintos da "carne", tão normais e aceitáveis nos animais, comportamentos que favorecem a sobrevivência da espécie (apetite, voracidade, sexualidade, ferocidade, competitividade, repouso e autopreservação), tornam-se "vícios" no humano, porque passam a responder não mais à Natureza, que os regula e harmoniza, mas ao ego, destacado do todo, perdido de cego, guiado apenas por seu próprio anseio. Estas são as paixões que seduzem e põem a perder a felicidade humana.

Sem a "carne", nada disto ocorreria: não teríamos necessidades, não teríamos anseio, não teríamos movimento. Seríamos plácidos,  angélicos e imóveis em eterna meditação contemplativa, abrindo-nos para o cosmo e encarando a face de Deus, tal qual um vegetal abre-se para o sol. Mas estamos aprisionados na carne num processo chamado "vida": precisamos constantemente cuidar de nossa carne para que ela não ceda ao processo inevitável de decaimento e apodrecimento que é o retorno ao estado inicial inanimado e inorgânico. Este processo de decaimento era conhecido pelos alquimistas como "Nigredo" ("Processo Negro") ou "Caput Corvi" ("Cabeça de Corvo") e englobava etapas bem definidas: Fermentatio, Putrefactio e Mortificatio. Na fase inicial, há a fermentação, o inchaço, a desnaturação. Aqui a cor é vermelha. Esta etapa é usada na fabricação de iogurtes e queijos, pães e bolos, bem como de bebidas alcoólicas. Segue-se a fase que é a putrefação, cuja cor é o negro propriamente dito: a decomposição e o decaimento da vida. Nas fábulas, o negro indica sempre essa putrefação, tal como o luto, a tristeza, muitas vezes a morte. E este negrume malcheiroso, é indispensável, pois como nos adverte Nicolas Flamel, "se não vier o negro, não virá o branco". Finalmente, somente quando extinto todo o processo, chega-se à fase da mortificação, onde já não há material orgânico a ser decomposto e toda a vida foi reduzida à sua base inanimada. Como a revelação dos ossos, o branco se faz ver! O processo de transformação é associado à ideia de morte, purificação e renascimento e só é possível através da abnegação e do desprendimento. "Horridas nostrae mentis purga tenebras, accende lumen sensibus" (purifica a horrenda escuridão de nossa mente, ilumina a luz dos sentidos).

Na alma, a etapa do Fermentatio se faz ver pela exacerbação das paixões e pelo aprofundamento da consciência justamente nos instintos animais, cada vez mais primitivos. Negar e reprimir não nos permite a evolução. Com uma correlação direta com a fermentação que produz álcool etílico, a etapa vermelha é uma embriaguez total, uma possessão dionisíaca, uma vitória inicial plena da carne sobre a razão. Alimentemos a alma com pão e com vinho (Fermentatio) e deixemos aflorar o animal em cada um, como um momento de confissão e catarse. Liberação total, mas não eterna. Em seguida, estes fluidos orgânicos passam a um processo de apodrecimento e decaimento franco, destruindo e levando consigo tudo o que é velho e desvitalizado. Chega-se ao Putrefactio, momento que não é nem um pouco simples ou agradável, em que se deve encarar a Natureza em sua face mais cruel: a carne, como deusa enfurecida, a Mãe Devoradora! Findo o processo, mas somente se o deixarmos ser conduzido até as últimas consequências, ele extingue-se a si mesmo e nos revela a fase branca: Sophia celestial que se apresenta derradeira do Mortificatio. Mas não se iluda: interromper o processo pela metade é pior do que jamais tê-lo iniciado. É preciso não ceder ao medo ou à culpa, não se deixar enganar pelo ego que se recusa a morrer.

Este é o único caminho possível para a purificação da carne: o que passa pela anulação do ego. Note: não pela aniquilação do ego, que seria psicose, loucura; mas sim, por sua adequação, sua domesticação, para que deixe de ser o centro do mundo (egocentrismo) e se torne, como sempre deveria ter sido, um instrumento de uma Consciência maior. Desta forma, perdido irremediavelmente nosso vínculo com as forças harmonizadoras da Natureza, adquiramos nós novas forças reequilibradoras vindas de mundos superiores. A isto os orientais dão o nome de "Moksha" ("Liberação"): o que era "Kama", o desejo mais ardente, o desfrute material dos sentidos, volta-se para a pureza da luz ("Sattva") e, como um vegetal, permite-se iluminar-se ("Buddha").



.