22 julho 2008










O filme chama a atenção pela simplicidade de seus cenários e cortes de cenas não convencionais. Todo o filme foi filmado dentro de um galpão localizado na Suécia com o mínimo de artefatos, há poucas mesas e algumas paredes, mas normalmente há apenas marcações no chão indicando que ali é a casa de tal pessoa, ou há um arbusto. Apesar dos personagens fazerem constantes referências a paisagem, ou ao céu, o fundo é infinito, tendo constantes alterações de luz e cor que indicam mudanças de dia/noite, clima e de momentos importantes do filme. O filme ainda tem um narrador onisciente e é o próprio Lars von Trier quem controla a câmera.

Tudo isso são artimanhas do diretor para que o público não se esqueça de que assistem a uma peça de ficção, valorizando o trabalho dos atores. O resultado é aberto a opiniões: alguns espectadores saem maravilhados com a sensibilidade com que Lars retrata a arrogância humana e a atuação brilhante (Nicole Kidman, vencedora do Oscar por “As Horas”), outros acham o filme longo e maçante (o filme tem quase três horas de duração).

Dogville apresenta claras referências visuais e influências de produção herdadas do movimento Dogma 95, manifesto cinematográfico que foi iniciado pelo próprio Lars Von Trier. Em Dogville temos a ausência de trilha sonora no filme, câmera na mão, não há deslocamentos temporais ou geográficos. Entretanto, em Dogville há a presença de gruas, iluminação artificial e cenografia, itens que eram proibidos no Manifesto Dogma 95.

Existem visíveis influências teatrais em Dogville, como o teatro de Bertolt Brecht, que costumava colocar avisos de 'atenção, não se emocione, isso é ficção' em suas peças; o teatro caixa preta, realizado em um único cenário com as paredes todas pretas, e finalmente o teatro do absurdo, onde os atores improvisam e criam situações onde interagem com objetos imaginários.

Percebe-se na construção da trama e no foco humanista do tratamento dos personagens influências de escolas de filosofia, especialmente as gregas. Por duas vezes cita-se nos diálogos os ensinamentos dos estoicistas, uma escola que pregava o abandono da emoção para vivermos sem dor. E muito da moral da história gira em torno da diferença entre o altruísmo - dar sem esperar nada - e o quid pro quod - que exige uma compensação equivalente para cada ação.

O filme é dividido em 10 partes - cada uma com créditos e uma introdução narrada -, sendo 1 prólogo e 9 capítulos. A trama acontece em um único local, uma cidade pequena dos Estados Unidos chamada "Dogville", situada no fim de uma estrada que vai até as Montanhas Rochosas, na época da grande depressão estadunidense.

O filme começa com uma tomada de cima para baixo, onde pode-se ver o desenho da cidade (com as marcações dos espaços das casas desenhados no chão). Essas tomadas perpendiculares repetir-se-ão em diversas cenas, sendo marcos importantes da narrativa. O narrador vai então apresentando os personagens um por um ("todos têm pequenos defeitos facilmente perdoáveis") e contando suas histórias.



Entre os moradores de Dogville, o personagem principal é Thomas Edison Jr., um escritor que para protelar o dia em que terá que começar a escrever seu livro se ocupa em pregar sermões a toda a comunidade sobre rearmamento moral. Ele está procurando um exemplo para servir de ilustração às suas teorias e assim comprovar que os moradores não são capazes de aceitar novas situações, quando é interrompido por barulhos de tiros a distância. Nesse momento entra Grace, uma bela jovem com um vestido que denota sua origem de família rica. Ela diz a Tom que está fugindo de um gângster e Tom, percebendo nela o exemplo perfeito para sua palestra, lhe dá cobertura.

Os moradores de Dogville a princípio recusam-se a aceitá-la, e Tom propõe que dêem a Grace um prazo de duas semanas, para então decidirem sua sorte. Grace, em compensação, deve ajudá-los em tarefas cotidianas. Apesar de não admitirem, eles jamais dão coisa alguma, não há generosidade ou aceitação: há um sistema de trocas e é esse sistema de compensações (o quid pro quod) que, aliado à personalidade de perdoar de Grace (seu altruísmo), anuncia a tragédia.

Os moradores relutam até mesmo em aceitar a ajuda de Grace, mas acabam aceitando e Grace rapidamente começa a passar seus dias ocupada em fazer pequenas coisas que "não são necessárias", mas que os moradores "generosamente permitem" que ela faça. E assim passam-se as semanas, os moradores aceitam que Grace fique na vila, como mais um favor que ela ficará devendo a eles. Tom confessa a Grace que gosta dela e é correspondido, mas ele não assume publicamente seu amor perante Dogville, mantendo o romance deles secreto e mantendo Grace na condição de estrangeira.



A aparente tranqüilidade da situação começa a mudar no dia da Independência, quando a cidadezinha recebe a visita da polícia, que afixa um cartaz onde Grace é apontada como procurada. Os moradores de Dogville consideram ainda maior a dívida de Grace com eles, fazendo cada vez mais exigências, que diante da permissividade e comportamento passivo de Grace, rapidamente transformam-se em abusos. Uma cena forte do filme é quando Chuck a estupra, como "pagamento" para que ele não a denunciasse às autoridades. Aqui a função do cenário vazio é clara: a ausência de paredes dá a nítida percepção de que todos sabem o que se passa, mas fingem não ver. A comunicação também não parece ser possível para os moradores de Dogville. O que eles falam passa longe de significar o que realmente querem dizer. Quando questionados são evasivos, mudam de assunto ou simplesmente respondem outra coisa. Chuck fala de colheita de maçãs quando está querendo abusar sexualmente de Grace, e Ma Ginger reprime-a quando ela passa entre os arbustos, com argumentos que simplesmente não correspondem àquilo que ela diz.

Desse ponto em diante a constante dívida de Grace com a comunidade só cresce e ela torna-se uma escrava não só de trabalho físico como sexual. Em pouco tempo a tratam como uma vaca, que puxa um arado, onde os caipiras se aliviam. Somente Tom, sem capacidade de tomar qualquer atitude, não a viola. E é após ela o rejeitar, que ele decide dar um basta nessa pequena metáfora ilustrativa que ela representa, chamando o gângster que a procurava. Nesse momento revela-se que Grace não está sendo ameaçada por eles, mas é a filha do chefe maior. Não há surpresa no final: desde que Grace entra no carro o diretor vai preparando a platéia com a idéia de que haverá um massacre. E sem dúvida, não fosse este final apoteótico, o filme terminaria morno, indigesto, como se todos estivessem com algo na garganta. O final catártico faz com que Dogville apresente uma estrutura narrativa herdeira das tragédias gregas, onde a platéia era levada a uma situação de tensão insuportável e liberava a adrenalina contida no final trágico.

Desde sempre, quase toda obra de arte é, em última instância, um retrato do ser humano. Lars von Trier não parece perdoar alma alguma, e faz um retrato de pessoas cruéis, mesquinhas, egoístas e arrogantes. Tom é um covarde, incapaz de assumir responsabilidade alguma (o drama de Grace começa no dia da Independência, quando ele não assume o romance com ela). Os habitantes da vila são "cães" que se comportam de forma instintiva, guiados pelas suas necessidades físicas e seus próprios interesses.

Nem mesmo a protagonista, Grace, é perdoada. Se ao longo do filme somos levados a vê-la como possuidora de uma generosidade infinita, o capítulo final mostra que não: se ela perdôou e permitiu que fizessem dela tudo o que foi feito é porque se considerava acima de todos, superior e indiferente como um "deus olímpico". Grace jamais foi cativa ou submissa, nunca sentiu real misericórdia e sim, desprezo. A todo momento temos a impressão de que, se ela realmente quisesse, poderia simplesmente ir embora, e que portanto os verdadeiros prisioneiros são os moradores - e ela sabe disto.






Na cena final há mais um elemento por trás de Grace: a platéia. Se a platéia passou o filme sofrendo com a passividade de Grace diante das brutalidades, agora se regozija, conscientemente ou não, concordando (e gostando) do massacre a que assiste. Essa é a forma do diretor dizer ao público: vêem? Vocês fariam o mesmo. Dogville é a antítese do bom selvagem de Rousseau. Sequer os bebês são sem pecado, apenas talvez o cão, que esse nada fez contrariando sua natureza animal e permanece o filme todo "preso" em sua corrente.

Nos Estados Unidos muitos espectadores sentiram-se ofendidos, acusando Lars von Trier de antiamericano. O fato de ele jamais ter visitado os Estados Unidos e de fotografias do período da depressão e de pessoas miseráveis estadunidenses serem usadas durante os créditos finais, ao som da música “Young Americans” de David Bowie, não depuseram a seu favor. Mas Dogville poderia ser uma cidade em qualquer lugar, em qualquer época.





Título Original: Dogville
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 177 minutos
Ano de Lançamento (França): 2003
Distribuição: Lions Gate Entertainment / California Filmes
Produção: Vibeke Windelov
Fotografia: Anthony Dod Mantle
Desenho de Produção: Peter Grant
Figurino: Manon Rasmussen
Edição: Molly Marlene Stensgard
Estúdio: Canal+ / 4 1/2 / Alan Young Pictures / Det Danske Filminstitut / Edith Film Oy / Film i Väst / Hachette Première / Isabella Films B.V. / J&M Entertainment / KC Medien AG / Kushner-Locke Company / Kuzui Enterprises / Liberator Productions / MDP Worldwide / Memfis Film & Television / Pain Unlimited GmbH Filmproduktion / Q&Q Medien GmbH / Sigma Films Ltd. / Slot Machine / Something Else B.V. / Summit Entertainment / Sveriges Television / Trust Film Svenska / Zoma Ltd. / Zentropa Entertainment / What Else? B.V.





DOGVILLE por Mozart Cabral




Escrito e dirigido por Lars Von Trier em 2003. Com Nikole Kidman, Paul Bettany, Harriet Anderson, James Caan, Lauren Bacall, Ben Gazzarra, John Hurt (o narrador-off) e outros maravilhosos atores numa dramaturgia de causar inveja a qualquer um que siga os padrões hollywoodianos. Este é o primeiro filme de sua trilogia: “América, terra das oportunidades”, ao qual seguirá “Manderlay” (2004) e Washington (2005).

É uma parábola da sociedade americana atual: um povo com medo. Onde o estrangeiro é sempre uma ameaça para os medíocres, apegados a seus preconceitos, sua moral hipocritamente puritana, seus valores calvinistas. Sua moral reduzida ao “toma lá dá cá”. Seres incapazes de generosidade. Sem compaixão. Afinal, um filme de gângsteres!

A quebra da bolsa dos anos 30 nos EUA e suas conseqüências sociais são o pano de fundo deste vilarejo “de fim de mundo” que nos é apresentado por Tom -- um aspirante a escritor de forma muito distanciada --, quase como se fosse, ele mesmo, um personagem em toda aquela história que nos torna menor moralmente.Quando, divagando solitariamente numa noite, entre elucubrações de como deveria agir moralmente naquela comunidade... Ouve tiros nas proximidades: Grace – como se fora uma indefesa raposina felpuda procurando uma toca para se esconder daquiloque poderia ser uma caçada perpetrada por dálmatas e galgos, que vêm ao seu encalço, -- vai parar naquela mina abandonada até que passe, momentaneamente, aquele perigo. Tom sente-se logo atraído por ela, mas reprime os seus instintos – como um rapaz deveria tratar uma dama que poderia vir a ser sua mulher, -- mas faltava-lhe o essencial, aquilo que era indispensável naquela situação toda: a coragem! Mas não, era um verdadeiro bunda mole. Um cabra frouxo, como se diz num bom nordestês. Que fleuma, que o cara tinha. Um lorde miserável, mas sem nobreza de espírito. Pensou que tinha conseguido tirar o corpo fora daquela situação cada vez mais conflituosa, lucrando uma boa grana e ainda conquistar politicamente aquele povoado desalmado: pagou caro. Ela agiu de forma nietzschiana! Vingança cruel. Grace – quase uma “Branca de Neve” -- que esperava encontrar em Tom o seu príncipe encantado, beijou na realidade um sapo!

Nesta “Canina Tragédia Desumana”, Von Trier faz com que a nossa heroína, desça ao “mundo dos mortos”, acompanhada – não por um Virgílio, mas – por uma espécie de escriturário, o Tom – sem nenhuma música – que vai lhe mostrando todas as fraquezas humanas: a vaidade daquele cego, o orgulho do médico pé-de-chinelo, a cobiça da mulher do próximo, o filho que rouba o pai, a mesquinhez das comerciantes, a inveja que as outras mulheres tinham de sua beleza nobre etc. Bem, ali é onde todos vão pagar os seus pecados.

Ela, além de ter uma relação edipiana com pai, recusa-se a assumir seus negócios escusos no mundo do crime, e vai parar num mundo de “anões” – homenzinhos, nibelungos sem um Siegfried! – que vivem sós para o trabalho, sem prazeres corporais, covardes, aniquilados pela recessão econômica. Agiu como uma arma de destruição em massa: assumindo o lugar do pai na máfia daquela região.Tornasse finalmente adulta. Passa a ser a matriarca da organização, e mostra que é capaz de “executar certas coisas que se tem que fazer pessoalmente”. E faz!

Seres humanos reduzidos à sua animalidade hobbesiana. Ali podemos ver também o que se chama de “homem comum” agindo dentro daquele contexto que vai cada vez mais sendo pressionado para o seu desenlace inevitável: chamar o ladrão, e não a polícia, que poderia comprometer todos eles criminalmente por mantê-la oculta da justiça, não a informando à polícia.



Grace acredita que o cão agia pela sua natureza, já os humanos, não. Creio que Trier acredite nisso também. Os homens não teriam natureza, já que o que eles são, é determinado pelo seu ser social e suas relações com uma sociedade historicamente determinada, neste caso, a recessão econômica dos EUA; as fotos finais nos créditos do filme mostram como o capitalismo destruiu aquelas pessoas moralmente, produzindo aquele tipo de espírito tacanho. Não deveriam ter-se comportado daquela forma que nos empobrece quando estamos numa situação de clara vantagem, e não damos abrigo a quem precisa, sem nada querer em troca. Ora, qualquer um poderá se ver casualmente numa situação semelhante, e gostaríamos de sermos socorridos por mera solidariedade desinteressada. Não é verdade? Assim é que se deveria fazer.

A sociedade americana de hoje se comporta de modo semelhante com os latinos, árabes, orientais, negros, ou com quaisquer despossuídos de uma forma geral, que potencialmente possam lhe causar futuramente algum tipo de perigo. O forasteiro é sentenciado pelo simples fato de ser de fora, mera condição estabelecida por eles, mesmo sendo, sabidamente por todos, inocente. Merecem, portanto, serem tratados com esta reciprocidade. Princípio do Direito Internacional.

Quando qualquer um faria teatro filmado daquilo, Von Trier fez cinema épico da melhor qualidade no sentido que lhe dava Brecht. Fugindo do cinema emocional praticado por Hollywood: o dramático. ”Na forma dramática, o espectador diz: Sim, eu também senti isso. – É assim que eu sou. – Sempre será assim. – O sofrimento desta pessoa me compunge porque não há saída para ela. – Isto é a verdadeira arte: tudo é evidente por si mesmo. – eu choro com aqueles que estão chorando e rio com aqueles que estão rindo. Já na forma épica, o espectador diz: Eu não teria pensadonisso. – Não se deve agir assim. – Isto é verdadeiramente extraordinário, é quase incrível. – Isto não pode continuar. – O sofrimento desta pessoa me compunge porque sem dúvida haveria uma saída para ela. – Isto é a verdadeira arte: nada aí é evidente por si mesmo. – Eu rio dos que estão chorando e choro dos que estão rindo”, diz-nos Brecht em: “Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico” em 1936. O efeito de distanciamento é conseguido magistralmente neste filme policial.

À medida que sua dependência aumenta daquela comunidade, eles começam a lhe exigir cada vez mais trabalho serviçal até lhe porem uma coleira com um chocalho, apensa uma roda de carroça que ela tinha que arrastar em Dogville. Não é assim que os jecas tratam uma vaca boa de leite?

Seja frágil numa sociedade qualquer, que ela te humilhará, te escravizará e te consumirá até a última gota de sangue... É o que lhe acontece inevitavelmente. Daí ser preciso um pouco de agressividade, que lhe faltava, durante a sua “via crucis” naquele mundo cão. Adotou a resignação estoicamente silente. Era a “Geni”, “que ia amiúde até com os velhinhos sem saúde...” E as crianças lhe tratavam como um cão vira-latas rabugento. “É impossível ser bom onde impera a maldade”, poetou Brecht.

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant nos dizem: “Não há, sem dúvida, mitologia alguma que não tenha associado o cão – Anúbis, T’ian-k’uan, Cérbero, Xolotl, Garm etc. – à morte, aos infernos, ao mundo subterrâneo, aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selênicas”.

“A primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo, i.é., guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida. É também visto no folclore, provavelmente por influência do cristianismo, como animal maléfico”.

“Para o Islã, a imagem do cão, é aquilo que a criação comporta de mais vil. Apegar-se ao mundo é identificar-se a ele, devorador de cadáveres; o cão é o símbolo da avidez, da gula; a coexistência do cão e do anjo é impossível. O coração de um cão assemelha-se ao coração de seu amo”.

Dogville tem também o seu cão de guarda, chamado de Moisés. É o seu messias! O Redentor prometido por Deus para redimi-los, e à sociedade, estabelecendo uma nova ordem social de paz, de justiça e de liberdade. Que ironia mais mordaz! Ele rosna para nossa protagonista porque ela lhe rouba seu osso. Estava agindo conforme sua natureza de cão. E é poupado justamente por isso. Para que ele possa devorar os cadáveres dali? Sim, mas também, principalmente por ser o guardião deste inferno. Mas seus habitantes são piores do que os animais ditos inferiores. Onde estaria a sua humanidade? A escassez de bens e o medo dos mais fortes fazem os homens reduzirem–se a meros animais com inteligência superior.

Ali maldade é exercida calmamente. Quase ninguém grita com o outro neste filme. Grace – seria uma graça? -- parece uma madre Tereza de Calcutá, derramando sua bondade naquele deserto, onde a amargura é o seu oásis.

Cinema épico, literatura em nove capítulos e um prólogo, consegue levar o espectador a um grau de tensão insuportável, com um desfecho surpreendente e inevitável. Por quê não conseguimos sequer ter compaixão por aquelas crianças que são -- um argumento eugênico? -- trucidadas para que a humanidade melhore, diz-nos Grace? Adiantaria isso realmente de alguma coisa? Ela comanda uma verdadeira “limpeza étnica” naquela região das Montanhas Rochosas. “Humano, demasiado humano!” O que lhe fizeram e o que ela também fez com eles. Hobbesiano. Sádico. Darwinista. Nietzschiano. Freudiano... E por que não dizer brechtiano!

Humilhada, escravizada, estuprada por quase todos os homens, traída daquela forma por Tom, como se fosse uma mula, que outrora era consumida naquela mina abandonada. Uma descida aos inferos como diziam os antigos gregos. Logo ela que fora criada para ser arrogante...







DOGVILLE por Bernardo de Gregorio



O próprio título já nos revela o “mundo cão” onde a ação tem lugar: uma alegoria ao mundo material; um “samsara” feito de ilusão, onde não se pode ver as construções materiais, mas somente o elemento humano; a “cidade do diabo”. A partir desta primeira alegoria, revela-se a nós toda uma seqüência de metáforas que nos leva a uma relação direta entre Dogville e a história do Cristianismo e das idéias cristãs na alma humana.

Grace: a “Graça” de Deus, a iluminação que tem a capacidade de (re)unir a materialidade e o Espírito. Grace é uma espécie de reencarnação de Cristo, alguém que veio de um outro mundo com uma missão bem específica: a Salvação. Grace vem de Los Angeles, a “Cidade dos Anjos” e acaba perdida em algum canto empoeirado e esquecido das Montanhas Rochosas (entenda-se: “mundo material”) chamado Dogville (“cidade do diabo”). O cão da cidade se chama “Moses” (Moisés) e a recebe com bastante hostilidade e não quer de forma alguma “largar o osso”. Evidentemente, aos olhos judaicos, o aparecimento do Cristianismo não poderia ser bem acatado e os sacerdotes do templo, Saduceus atemporais, jamais vão “largar o osso” da religião, sempre tão rentável. Mas o animal tinha um motivo para não gostar dela, afinal ela havia roubado seu osso.

A cidade como um todo antes de aceitar a presença de Grace precisa fazer um debate e uma votação, após um período de teste, em que haverá serviço em troca de abrigo, vantagens em troca de bondade. Grace é levada a se esconder nas profundezas de uma mina de ouro abandonada, “descendo à mansão dos mortos”, para ressuscitar ao terceiro dia, tendo sido aceita na comunidade. Uma vez esta mina de ouro foi a fonte das riquezas da cidadezinha. Uma vez o ouro do Espírito foi trazido das profundezas da alma por sabedorias antigas. Mas esta mina foi abandonada e a cidade caiu no ostracismo. Mas a sabedoria da Antigüidade foi esquecida e a Humanidade caiu. Símbolo desta queda é a venda de maças ao “mundo exterior”, como uma das pouquíssimas fontes de renda do local. "E os que prenderam a Jesus o conduziram à casa do sumo sacerdote Caifás, onde os escribas e os anciãos estavam reunidos. E Pedro o seguiu de longe, até ao pátio do sumo sacerdote e, entrando, assentou-se entre os criados, para ver o fim (Mt 26:57-58)".

Grace está fugindo e pede ajuda. Na verdade, ela não está de fato fugindo de ninguém e isto fica bem claro na cena final, mas mesmo assim ela se apresenta como fugitiva. Por quê? O Ser Humano precisa acolher em si a Graça Divina de livre e espontânea vontade: a Graça não pode ser imposta. Grace vem falar aos corações de uma população esquecida e pedir ajuda acaba sendo a melhor maneira de oferecer ajuda. E de fato Grace oferece sua ajuda a cada um dos habitantes desta cidadezinha: arquétipos humanos atemporais e, de fato, ao se deixar ser ajudada ela faz emergir o melhor de cada um. E, de fato, o Cristianismo acabou sendo utópico nas primeiras fraternidades secretas do Século I, quando ainda era secreto e perseguido. Alegorias abundam: Grace, numa cena plasticamente muito bela, traz a luz à casa do cego e traz vida para o jardim desgastado; traz esperança para os que vagavam sem destino e alegria para as crianças, quando Grace ensina o estoicismo aos filhos de Vera, mostrando-lhes como suportar a pobreza e as frustrações sem revoltas. "Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se abrirão. Então os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará; porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo (Is 35:5-6)".




“Numa das muitas cenas estranhas e incômodas de Dogville”, diz-nos Michel Laub, “duas personagens conversam a respeito de bonecos de louça guardados no interior de uma igreja. Os bonecos ‘descrevem melhor a cidade do que qualquer palavra’, diz a narrativa em off, que em seguida pergunta: ‘Eles são bonitos ou horríveis?’. Para Grace, pelo menos àquela altura da trama, a alternativa correta parece ser a primeira. Para Tom, também assim parece. Em todos os casos está-se diante da contraposição da inocência e da brutalidade, normalmente encarnada num grupo de pessoas ‘comuns’, numa coletividade anestesiada pela pasmaceira provinciana. A inocência lentamente perderá a batalha, não se tenha dúvida, e até os ‘justos’ saberão revelar a sua face daninha. A câmera aparentemente neutra que assiste ao progressivo desespero dos personagens, à exposição de suas entranhas a uma luz de meio tom, rara como o sol dos países nórdicos. Antes de jogá-la sobre o cego, o aleijado, o bêbado, a família que se odeia e a gente que ‘raspa copos velhos para que pareçam novos’, Dogville põe Tom e Grace diante dos bonecos e faz a sua pergunta decisiva. Ao final do filme, não haverá nada mais violento do que a lembrança dessas palavras e do seu tom à sua maneira premonitório. Porque a questão posta por toda a obra de Lars von Trier é esta: vamos olhar os bonecos de perto. Vamos testar Grace? Vamos ver como ela reage quando é examinada tão minuciosamente? Vamos ver se o conceito que ela tem de beleza permanece o mesmo depois que os habitantes de Dogville mostram do que são capazes?”. A questão é: até que ponto o Cristianismo é capaz de acreditar na Humanidade e em sua capacidade de redenção? Até que ponto Cristo consegue levar seu papel de humildade sem que dele se irrompam as labaredas da cólera dos deuses?




Então aos poucos Grace desperta também em cada habitante o seu lado mais sombrio... Cada um vai mostrando o que há de pior na natureza humana, igualmente arquétipos universais. Os sete pecados capitais: a vaidade (Liz Henson), o orgulho (Jack McKay), a ira (Vera), a luxúria (Homem de chapéu grande), a avareza (Ma Ginger) e a inveja (Chuck). Dentre todos, o mais miserável aos olhos do espectador deve ser Tom (Thomas Edson Jr.) que desde o começo se arvora como o defensor de Grace, o auto-designado porta-voz da pequena comunidade, e acaba se revelando seu maior algoz. Tom é um Pedro que é capaz de negar Jesus bem mais que três vezes. Tom bem que poderia se chamar Paul, aludindo a São Paulo, por ser o intelectual que cria o laboratório do mundo de acordo com sua teoria para que seu “grande livro” seja escrito. Mas Tom se chama Thomas, talvez alusão a São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja, intelectual que forjou a religião de forma filosófica. Tom é a própria Igreja Cristã: emergida da obscuridade e passando a ser a religião oficial do Império Romano. Igreja que rapidamente englobou e sobrepujou o império que a abrigou a se imortalizou como uma Roma Universal (“catholiké”) onde o novo imperador é o Papa. E é precisamente este Papa o que mais aviltará a Graça Divina, aquele que mais se aproveitará da imagem do Cristo e em nome da Salvação prostituirá a Igreja e não moverá uma palha para salvá-la ou redimi-la. Diz Mozart Cabral “à medida que sua dependência aumenta daquela comunidade, eles começam a lhe exigir cada vez mais trabalho serviçal até lhe porem uma coleira com um chocalho, apenas uma roda de carroça que ela tinha que arrastar em Dogville. Não é assim que os jecas tratam uma vaca boa de leite?”.

A Graça Divina é então abusada, usurpada, prostituída, achincalhada, humilhada e (literalmente) avacalhada. Acima de Grace se colocam todas as demais personagens, o que inclui os trocadilhos dos nomes de Glória (o Poder Social, a “Fama”) e Vera (Verdade da Natureza Humana). Numa revelação final, num “apokalipse”, Grace é resgatada por seu pai. Este pai “todo-poderoso” é um gangster que invade a cidade com seus capangas. Este é Deus-Pai que vem impor pela força o que Cristo não conseguiu incutir pelo amor. “Nesse momento”, diz Alexandre Busko Valim, “ela e o pai dialogam sobre a soberbia: ela quer o perdão para os habitantes da cidade, como se dissesse ‘eles não sabem o que fazem’. Deus a acusa de soberbia por fazer a concessão de perdoar quem lhe é inferior e lhe impingiu tanto sofrimento. Grace diz que o pai é soberbo devido à sua vontade de vingança e pede poder, que lhe é concedido, para salvar Dogville. Entretanto, ao sair do carro, e ouvir Tom ‘o intelectual’ dizer que escreveria sobre o que se passou, que aquilo seria passível de análise, ela se desilude com a humanidade e purga Dogville com o aniquilamento. A esperança que Grace tinha na humanidade se perde quando os que realmente poderiam fazer algo, o titubeante Tom, não fazem e reafirmam sua hesitação e passividade; uma crítica ao papel dos intelectuais como operadores sociais, que reforça a opinião do diretor: a humanidade não tem salvação”.






A redenção, no entanto, a esperada “salvação” tem que vir então através de uma forma mais agressiva: a cólera dos deuses. A justiça divina é feita pela mão de Deus-Pai e seus anjos (ou Cavaleiros do Apocalipse), porém é feita de acordo com as instruções de Cristo que retorna como o “Leão de Judá”. A paciência de Jesus não é infinita e o “oferecer a outra face” se esgotou. Chega de brincadeiras no “mundo cão” mesquinho: agora o joio será separado do trigo e a materialidade será colocada de acordo com os ditames do Espírito, custe o que custar. E o custo é um enorme derramamento de sangue. Todos os arquétipos são destruídos, assim como a Natureza Humana (Vera) destruiu seus ideais (as estatuetas de louça). Os filhos de Vera caem um a um sob o olhar atento da mãe que lhes deu vida, vítimas do mesmo estratagema criado por ela própria. A Natureza Humana reencontra sua “verdade”. "Depois virá o fim, quando tiver entregado o reino a Deus, ao Pai, e quando houver aniquilado todo o império, e toda a potestade e força” (I Co 15:24).





A palavra apocalipse (termo primeiramente usado por F. Lücke em1832) significa, em grego, "Revelação". Um "apocalipse", na terminologia do Judaísmo e do Cristianismo, é a Revelação Divina de coisas que até então permaneciam secretas a um profeta escolhido por Deus. Por extensão, passou-se a designar de "apocalipse" aos relatos escritos dessas revelações. "E da parte de Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra. Àquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados, E nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a ele glória e poder para todo o sempre. Amém" (Ap 1:5-6). “De maneira bastante moralista”, diz Alexandre Busko Valim, “o filme afirma repetidamente, e de forma agressiva, que todos somos responsáveis pelos nossos atos, e se temos problemas é porque não fazemos o suficiente para resolvê-los. Assim, nossa ignorância e ausência de um verdadeiro interesse pelo coletivo, ilustrado em várias passagens, é a alavanca que causa dor e sofrimento a nós mesmos”. Este “supra-sumo” ético do filme é, em última análise, o cerne do Cristianismo e também, diga-se, de muitas outras religiões: eis a Graça Divina em si. “Em Dogville, Lars von Trier apresenta uma percepção pessimista da humanidade”, continua Alexandre Busko Valim, “onde impera o cinismo, a hipocrisia, a chantagem, a vingança, a mentira e a divina Grace, sem nenhum desejo de conceder o perdão, desencadeia o ‘Dia do Juízo Final’.”


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