31 julho 2008

Manderlay é um filme dirigido por Lars von Trier e cuja história se constitui como seqüência para Dogville, do mesmo diretor. A continuação tem diversas dimensões. Mas, a principal delas é, sem dúvida, a denúncia do racismo e de como funciona a opressão. Não só nos Estados Unidos, nem apenas em seu aspecto ativo, mas também em sua forma passiva e universal.

No início do primeiro filme da trilogia, Grace chega a Dogville fugindo da arrogância de seu pai. Disposta a provar que ser humilde e servir as pessoas é o caminho da harmonia na vida social. No início de Manderlay, Grace está deixando para trás uma Dogville arrasada. Depois de sofrer todo o tipo de humilhação e violência por parte dos moradores do lugarejo, Grace deixa se convencer por seu pai, que despreza seu amor tolo pelas pessoas. Ela permite que os capangas de seu pai queimem Dogville e matem seus habitantes.


Voltando para casa com seu pai (Willem Dafoe), Grace (Bryce Dallas Howard) se depara com uma fazenda em que a escravidão continua, 70 anos após seu fim oficial nos Estados Unidos. O local chama-se Manderlay e fica no Alabama, estado do sul do país. Grace usa as metralhadoras e rifles dos capangas de seu pai para obrigar a proprietária do local a libertar os negros cativos. Os recém libertos reagem com temor e desconfiança. O negro veterano Wilhelm (Danny Glover) acha que terão dificuldades para se adaptar à liberdade. O orgulhoso Timothy (Isaach De Bankolé) desconfia das intenções da moça branca e rica. Contra a vontade de seu pai (Willem Dafoe), Grace resolve ficar e provar que a liberdade é melhor que qualquer escravidão. Mas não abre mão de fazer isso acompanhada de alguns homens armados.

Com a morte súbita da proprietária do local, Grace e os negros libertos assumem a administração da fazenda. Os problemas são muitos e começam com a indiferença dos negros em relação ao plantio do algodão na época certa para sua colheita. Mas o maior obstáculo é a resistência dos negros em considerar sua nova condição de trabalhadores livres superior à anterior. Em certo momento Wilhelm afirma que a libertação alcançada 70 anos atrás pouco mudou a situação dos negros. Em resposta, Grace cita os “40 acres de terra e uma mula” que foram prometidos a cada negro liberto no fim da Guerra Civil americana. Wilhelm diz que tal promessa nunca foi cumprida. E é verdade. O que era para ser uma reforma agrária voltada para os negros jamais foi feita. Virou um mito.

Manderlay não é tão bom quanto Dogville, mas mesmo assim é muito bom. Apesar do cenário desta vez não surpreender, a partir do ponto que aqui você já espera pela falta do mesmo, o filme conta com momentos brilhantes. O que chama a atenção é a iluminação (ou a falta dela) que leva o filme a se tornar extremamente escuro, criando um clima angustiante. Grace, a bem-intencionada filha de gângster que no primeiro filme era interpretada por Nicole Kidman, reaparece em Manderlay na pele da igualmente talentosa Bryce Dallas Howard. Nicole Kidman pretendia também atuar em Manderlay, mas teve que desistir do filme em julho de 2003 devido a conflitos de agenda. Talvez o grande problema do filme seja o tempo que você leva para se acostumar com Bryce no papel de Grace. É provável que você nem chegue a se acostumar. A filha de Ron Howard não consegue em momento algum passar para o telespectador a força que Nicole passava. Bryce, que apareceu recentemente em destaque para o mundo com sua grande performance em A Vila, veio a ser uma substituta à altura: a atriz tem características físicas semelhantes à Grace original (pele bem clara e cabelos de cor parecida), e talento suficiente para impor-se em cenas difíceis (e há várias delas), ainda que a experiência não seja muita; o problema é compará-la com Nicole.



  • Título Original: Manderlay
    Gênero: Drama
    Tempo de Duração: 139 minutos
    Ano de Lançamento (Dinamarca / Holanda / Inglaterra / Suécia / França / Alemanha): 2005
    Distribuição: California Filmes
    Produção: Vibeke Windelov
    Fotografia: Anthony Dod Mantle
    Figurino: Manon Rasmussen
    Edição: Bodil Kjaerhauge e Molly Marlene Stensgard
    Estúdio: Zentropa Entertainments / Film i Väst / Manderlay Ltd. / Edith Film Oy / Isabella Films B.V. / Memfis Film & Television / Sigmall Films Ltd. / Ognon Pictures / Pain Unlimited GmbH Filmproduktion.






    A Máquina da Opressão


    MANDERLAY Por Sérgio Domingues


    Na verdade, para Lincoln os negros eram inferiores. Nem mesmo a Guerra Civil teve como única causa o fim da escravidão. O debate em torno do cativeiro negro era mais um pretexto na briga entre os brancos do sul e do norte do país. Os primeiros queriam manter sua autonomia e as atividades ligadas às grandes plantações. Os segundos queriam mais centralização política e expansão da indústria. Abraham Lincoln entrou para a história como “o libertador”, mas considerava os negros inferiores e defendia sua volta à África. Em plena guerra, Lincoln decretou o fim da escravidão apenas nas regiões controladas pelos sulistas para privá-los da força-de-trabalho negra e enfraquecer seu esforço de guerra.

    Terminada a guerra, a necessidade de manter a união entre os brancos fez com que os nortistas fechassem os olhos à criação da Ku Klux Klan, em 1866. Um pouco mais tarde, vieram as leis de separação nos estados do sul. Negros não podiam freqüentar os mesmos lugares públicos que os brancos. O filme de Lars Von Trier se passa em 1933. Seriam necessários mais 32 anos de muita luta para que essas leis caíssem. No norte, elas não foram necessárias. Os negros eram muito poucos e um racismo informal como o que conhecemos no Brasil era suficiente.

    Outro mito que se construiu é a de que o racismo declarado dos Estados Unidos teria permitido aos negros que reagissem e progredissem. Não é bem assim. Além do que nos mostrou a tragédia do Katrina, há números bastante evidentes. Em 2005, o desemprego entre os negros é de 10,8%. Entre os brancos, é de 4,7%. Mais de 70% dos brancos têm casa própria, contra menos de 50% dos negros. Os negros têm três vezes mais chance de ir para a cadeia. O total de rendas de uma família negra é 10 vezes menor do que de uma branca.

    De qualquer maneira, essa situação não justificaria o que parece ser o conformismo dos personagens negros do filme. Mas, há aí outra dimensão do racismo ou de outras formas de preconceito e discriminação. Em primeiro lugar, não nos esqueçamos que a escravização negra dos séculos 16 a 19 deve ser o maior caso de aprisionamento e deslocamento forçado de seres humanos em toda a história de nossa espécie. Milhões de pessoas foram transferidas para as Américas em navios que eram verdadeiros matadouros. Vieram para trabalhar numa terra desconhecida, em condições terríveis e sob extrema violência.
    O segredo é conquistar as almas

    Mas, não só isso. Todo um corpo de teorias com pretensões científicas foi criado para justificar esse crime sem antecedentes. O racismo, como teoria da superioridade da “raça branca” sobre “as outras”, foi criado para justificar a escravidão negra. Portanto, não se trata apenas da repressão, da violência, das correntes, do tronco e do chicote. Trata-se também de dominação ideológica, de convencimento e justificação. É por isso que damos o nome de opressão a esse tipo de dominação. Não se trata apenas de repressão, mas de fazer o oprimido internalizar o preconceito e a ele se acomodar. Infelizmente, é um mecanismo bastante eficiente. Afinal, é mais provável que o negro, a mulher, o homossexual, sem consciência sintam culpa pelo que são do que enxerguem o erro na perseguição que vem da sociedade. A tendência é assumir a inferioridade que lhes atribuem e justificar a discriminação.

    Esse parece ser o caso dos negros de Manderlay. Eles continuam, por exemplo, a comparecer no pátio na hora em que a senhora branca (Lauren Bacall) determinou, mesmo após a morte dela. No entanto, os desdobramentos posteriores do filme não permitirão que as coisas sejam explicadas apenas por isso. A internalização da opressão não leva apenas à passividade. Também estabelece as bases para um pacto terrível e resistente, em que os oprimidos se acomodam à situação e a reproduzem. A isso, chamamos hegemonia. Não é apenas a repressão e a dominação política. Não se trata de prender braços e pernas, convencer a inteligência ou vencer pelo estômago. É o mesmo que conquistar as almas. E, aí, a máquina da opressão funciona às mil maravilhas para os que estão por cima. Não só nos Estados Unidos, mas onde quer que relações de dominação existam.

    O grande achado de Manderlay é a postura de Grace. Ela praticamente obriga os cativos a se libertarem, lembrando uma estranha e perigosa frase atribuída a Che Guevara: “É preciso libertar os homens, mesmo que eles não queiram”. O pai de Grace cita o exemplo do passarinho acostumado à gaiola, que morre quando o libertam porque já não sabe voar. Se isso é verdade para os negros de Manderlay, Grace também cai prisioneira de uma armadilha. Não se trata de negar a violência que os dominados são obrigados a utilizar para responder à violência dos dominadores. O problema são as soluções autoritárias para situações de injustiça. Alternativas que acabam aprofundando a própria lógica da injustiça. Um problema enorme, enfrentado por todas as revoluções. Que Grace não tenha apresentado soluções para isso não é o mais grave. Grave é o fato de suas ações terem acabado por manter a máquina do racismo em funcionamento.

    Este é o segredo do combate à dominação de classe. Combinar resistência e o combate à exploração e à violência com o desmonte dos mecanismos de dominação ideológica. O final surpreendente de Manderlay pretende mostrar que, tal como o relógio que foi regulado de forma imprecisa, a luta pela liberdade humana não pode abrir mão de um entendimento claro do que seja a auto-emacipação dos explorados e oprimidos. Em Dogville, Grace adota a servidão e acaba escrava. Em Manderlay, a personagem cede à arrogância bem intencionada e torna-se autoritária. Entre a servidão do primeiro e a arrogância do segundo, esperemos que Von Trier nos apresente uma proposta interessante no terceiro e último filme.




    O Povo da Lei


    MANDERLAY por Bernardo de Gregorio


    Mais uma vez é o título que nos revela a verdade por trás das aparências. “Manderlay” é um trocadilho com o termo “vanderlay”. “Van der lay” em Holandês significa “da condição”, “da configuração”, “da lei” (sim: que em Português originou o nome “Wanderley”). “Manderlay” significa então “gente da lei” e abre-se uma leitura nova do filme para além óbvia apresentada por Lars von Trier. Se Dogville narra o Novo Testamento, mostrando o Cristianismo de seus primórdios até o Apocalipse, Manderlay nos mostra o Velho Testamento: o Pentateuco (do Grego, "os cinco rolos").

    O Pentateuco é composto pelos cinco primeiros livros da Bíblia. Entre os judeus é chamado de Torah, uma palavra da língua Hebraica com significado associado ao “ensinamento”, “instrução”, ou especialmente “Lei”. O texto é atribuído a Moisés e se compõe pelo Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Manderlay fala-nos então sobre a Lei de Moisés e suas origens na História longínqua e na psique humana. Portanto “Manderlay” é também “o povo da Lei”. Estes preceitos com cerca de cinco mil anos de idade formam a base moral da doutrina hebraica (e por conseqüência, da cristã e da islâmica) e distinguem aqueles que são considerados “puros” daqueles que são “impuros”. Os chamados “verdadeiros judeus” devem se manter “pios”. Estas leis, conhecidas como Leis Mosaicas, foram escritas com a clara finalidade de regulamentar a religião e de infundir valores de higiene e de medicina preventiva entre o “Povo Escolhido”. De uma forma ou de outra, os judeus adotaram para si estas leis como sua “marca registrada” e com o passar dos séculos, a Lei Mosaica passou a ser a forma mais simples de fazer a distinção clara entre o povo judeu (os “puros”) e os demais povos da época (os “ímpios”). Desta forma, as restrições alimentares (como a restrição à carne de porco ou ao consumo de moluscos e crustáceos), o respeito às festas judaicas (como o “Pessach”), aos rituais judaicos (como a circuncizão) e a observância restrita à manutenção da raça judaica passaram a ser características intimamente ligadas à própria noção de Israel (o povo judeu).

    A “velha senhora”, a dona da fazenda é a Lei Mosaica. Sob seu leito de morte jaz um livro onde a Lei foi imortalizada: a Torah. Ao morrer a velha senhora sugere que o livro seja queimado. Ou seja: se a Lei Mosaica já não mais se aplica, a Torah em si deveria cair em desuso. Grace, extremamente arrogante, guarda o livro para si e desde o início se coloca contra a escravidão e contra as leis da velha senhora. Grace clama por liberdade de forma arrebatada, apoiando-se na força de seus capangas para “libertar” o povo escravizado pela lei. Grace é novamente a revolução do Cristianismo que veio para fazer a “Nova Aliança” com Deus e trazer a “Nova Lei” que figurará no lugar da antiga. O “Novo Testamento” que suplantará o “Antigo Testamento”. O “amor” que veio substituir o “olho por olho” (o quid pro quod de Dogville). Para instituir a democracia naquela sociedade aristocrática Grace organiza reuniões de livre debate, mas para obter quorum em suas “reuniões” ela necessita obrigar, sob a mira de metralhadoras, os habitantes a comparecerem. Democracia estranha... Não há como desassociar essa democratização empreendida por Grace, com as atitudes do governo americano em relação ao Iraque, entre outros atos de "democracia à força". Será que as pessoas podem ser forçadas a seguir esse modelo? Os libertados de Manderlay, por exemplo, não mostram qualquer tipo de iniciativa. Grace não desiste e, em seminários, começa a ensiná-los a agir democraticamente, utilizando os votos da maioria, deixando para trás as decisões arbitrárias. Esta “democracia” imposta nas estranhas “assembléias” de Grace referem-se claramente às “assembléias de Deus”. “Assembléia” se diz eklesia em Grego: Igreja. A “salvação” imposta pela força é marca registrada deste Cristianismo que se arvora o status de “super potência” durante toda a Idade Média e Renascimento e quizás ainda hoje.

    A “Nova Aliança” fica então sacramentada com um contrato firmado por todos e redigido por Joseph, o gangster especialista em leis: o “Novo Testamento”. Os escravos tornam-se os novos donos da plantação e os ex-donos tornam-se os novos escravos. Existe até mesmo uma cena em que eles se apresentam com os rostos pintados grotescamente de preto. Estes ex-donos são evidentemente os judeus que desde a destruição do Templo de Jerusalém em 60 dC, a Diáspora, se viram perseguidos pelo mundo afora: da Inquisição à Segunda Guerra Mundial.

    Uma esquizofrenia foi vivida com a expansão do Cristianismo. Os extremos foram cultuados e vividos de forma dramática: a Bíblia era tida como a “vontade expressa do Senhor”, revelações incontestáveis do divino. Paradoxalmente judeus eram perseguidos e mal vistos devido sua rejeição ao Filho do Homem, o Cristo. Ninguém parece nunca ter se atentado para o detalhe de que Jesus, todos seus familiares e seguidores terem sido efetivamente judeus... Os infiéis precisavam ser “salvos” a todo custo. Tais fatos “justificaram” as Cruzadas, por exemplo. Evidentemente as Cruzadas foram geradas principalmente pela falta de terras disponíveis aos nobres sem-terra (filhos mais novos sem direito a herança) e ao crescimento da pobreza na Europa. O anti-semitismo foi apenas um pretexto que sobreviveu por milênos, apesar da noção de igualdade e de universalidade proposta pela Igraja Cristã. Da mesma maneira nos Estados Unidos há “liberdade e justiça para todos”, ao lado de classificações raciais que continuam a vigorar e de uma injustiça social que corrompe a sociedade subterraneamente.

    Todo o tempo Grace fala em nome da liberdade: remodela todos os costumes e hábitos e até mesmo o horário do relógio é discutido. O Cristianismo igualmente muda até mesmo a contagem do tempo, criando um novo calendário, dividindo as águas do mar do tempo entre: “antes de Cristo” e “depois de Cristo”. O dia sagrado, o “sétimo dia” (“shabat”, “sábado”) em que Deus descansou, também foi mudado: agora reverenciaremos o domingo, “o dia do Senhor”. "Lembra-te do dia do Shabat, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o Shabat do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do Shabat, e o santificou" (Êxodo 20:8-11). Graves conseqüências aguardam por Grace no final do filme por esta hybris de ter mudar a contagem do tempo a partir do voto...

    Mas a chave para o entendimento da ação está visível todo o tempo no centro do cenário: “o poço de Lúcifer”. Nome estranho para um poço. Quem é este Lúcifer? Conta-nos o mito hebraico que Lúcifer, o Portador da Luz, era o mais belo dos anjos (na verdade um arcanjo) e recusou-se a cuidar da Humanidade por se achar superior a esta tarefa. Como punição, Lúcifer foi condenado a habitar as entranhas da Terra, onde criou para si um mundo de luz e calor, de onde arrebanha legiões de demônios que lutam a seu favor e alicia almas humanas propondo-lhes pactos e oferecendo-lhes prazeres sensuais. Lúcifer luta pela liberdade e pelo prazer sem esforço e deseja, em sua revolução, que todos os espíritos se libertem da tirania de Deus e suas Hostes. Lúcifer, transformado em serpente, ainda foi o responsável pelo Pecado Original que levou à queda a humanidade. Se você pergunta para cristãos quem é Lúcifer, a maioria deles provavelmente lhe contará esta história sobre Lúcifer como sendo um anjo que foi expulso do Céu porque ele era orgulhoso e quis assumir o comando do Paraíso, ou algo do tipo. Interessantemente a Bíblia não diz tal coisa, e a história de Lúcifer é uma dessas histórias que são apenas algum tipo de tradição oral que tem sido veiculada com o passar do tempo por pessoas que nunca gastaram seu tempo em pesquisar as origens da mesma. Se você fizer uma procura na Bíblia, verificará que a palavra "Lúcifer" só é encontrada em Isaias 14:12. “como foste tu se caído do céu, ó Lúcifer, filho da alva”. Mesmo assim, a maioria das versões da Bíblia não usa a palavra "Lúcifer": “como caíste do céu, ó estrela matutina, filho do amanhecer”. O original hebreu lê-se “oh Helel, filho de Shahar”. Shahar era um Deus babilônico do amanhecer, e Helel era o filho dele, a estrela matutina, o qual nós chamamos de Vênus. Shahar teve um irmão gêmeo chamado Shalem, que era associado ao crepúsculo e o aparecimento de Vênus à noite (estrela vespertina). Jerusalém quer dizer "Casa de Shalem" do qual vem da adoração do planeta Vênus como uma estrela da noite. A idéia de "siga em paz” ou "a paz esteja com você" se originou de histórias de Vênus que adentra à noite ao mundo dos criminosos. “Shalem” tornou-se “Shalom" com o passar do tempo.

    Este poço é pois a ligação entre “o mundo de baixo” e o “mundo de cima”, inconsciente e consciente. Dele vem a água que alivia o tormento de todos e irriga a plantação. Dela vem a libertação. Lúcifer é luz, beleza, prazer e liberdade. O autor do Apocalipse reivindica que Cristo, chamado no texto como “o Cordeiro”, referiu-se a si mesmo como "Estrela Matutina”, o que entra em conflito com a idéia de que Satanás é um anjo caído nomeado Lúcifer ou “estrela de manhã”. “Eu, Jesus, enviei meu anjo, para vos testificar estas coisas nas igrejas: eu sou a raiz e a geração de David, e a resplandecente ‘estrela matutina’” (Apoc 22:16). Jesus chama a si mesmo de “estrela matutina”, da mesma maneira que Vênus era uma estrela matutina e uma deusa de amor para os romanos. É suposto que Jesus expressa a idéia de amor incondicional, da mesma maneira que Vênus e muitas de suas antigas personificações expressaram idéias de amor e beleza e brilho. Grace vem em nome destas mesmas virtudes. Trata-se do novo se impondo ao velho, do revolucionário ou, se quiserem, do subversivo. Esta é a natureza de Lúcifer, esta é a natureza de Cristo, esta é a natureza de Grace.

    Porém, com o decorrer do filme, as inovações de Grace vão se mostrando problemáticas e vão acarretando uma série de desequilíbrios e aberrações no meio ambiente local e na micro-sociedade de Manderlay. Aos poucos o expectador vai entendendo que a Lei da Senhora havia sido criada com sabedoria e era a responsável pela harmonia do lugar. A culminação deste processo é quando Grace se vê forçada ela mesma a utilizar o sistema de classificação psicológica que faz parte da Lei da Senhora para compreender as atitudes de Timothy. No final do filme Grace se vê de chicote em punho espancando ela mesma um negro, na exata mesma atitude em que encontrara a velha senhora. Numa revelação aterradora, descobrimos que o autor da lei não havia sido nem a velha senhora nem nenhum branco, mas o experiente Wilhelm, ele mesmo um negro escravo. A Lei havia sido então uma maneira encontrada de manter o status quo depois da abolição da escravatura, protegendo os negros de um mundo hostil. Como ocorre em muitos dos filmes de von Trier, a idealista personagem principal é chocada e frustrada pela realidade dos fatos.















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