14 maio 2006

Abril Despedaçado

"Um filme lírico e dramático, admiravelmente filmado no nordeste brasileiro.

Os atores vivem seus papéis com intensidade. A direção é soberba.."

Variety


Título Original: Abril Despedaçado
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 105 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2001
Estúdio: Video Filmes / Haut et Court / Bac Films / Dan Valley Film AG
Distribuição: Miramax Films / Columbia TriStar do Brasil
Direção: Walter Salles
Roteiro: Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz
Baseado em livro de Ismail Kadará
Produção: Arthur CohnMúsica: Antônio Pinto
Fotografia: Walter Carvalho
Desenho de Produção: Marcelo Torres
Direção de Arte: Cássio Amarante
Figurino: Cao Albuquerque
Edição: Isabelle Rathery
Rita Assemany (Mãe)
Ravi Ramos Lacerda (Pacu)
Flávia Marco Antônio (Clara)
Everaldo Pontes (Velho cego)
Abril Despedaçado é livremente inspirado no livro homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré. A adaptação para o cinema foi realizada por Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, e as filmagens aconteceram entre agosto e setembro de 2000 nas cidades de Bom Sossego, Caetité e Rio de Contas, interior da Bahia.

Abril 1910 - Na geografia desértica do sertão brasileiro, uma camisa manchada de sangue balança com o vento. Tonho, filho do meio da família Breves, é impelido pelo pai a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta ancestral entre famílias pela posse da terra. Se cumprir sua missão, Tonho sabe que sua vida ficará partida em dois : os 20 anos que ele já viveu, e o pouco tempo que lhe restará para viver. Ele será então perseguido por um membro da família rival, como dita o código da vingança da região. Angustiado pela perspectiva da morte e instigado pelo seu irmão menor, Pacu, Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição. É quando dois artistas de um pequeno circo itinerante cruzam o seu caminho...

No filme há então um pai castrador e autoritário que comanda a família numa rota auto-destrutiva, pois há uma vendeta de sangue, há vingança da vingança da vingança. A questão aqui é: Tonho segue a vendeta familiar e aceita a própria morte ou abandona a tragédia familiar e segue rumo à liberdade?

A cobrança de sangue no Brasil
Escrito na década de 40, o livro Lutas de Família no Brasil, de Luiz Aguiar Costa Pinto, nos permite entender como os conflitos que aconteceram no nosso país se aproximam - ou se distanciam - daqueles vividos na Albânia de Kadaré. Baseado na análise dos confrontos entre as famílias Pires e os Camargos, em São Paulo, e entre os Feitosas e os Montes, no Ceará, o livro prova que a vingança, no Brasil, se dá na ausência do estado regulador.

É algo que surge de forma natural, espontânea, e que só deixa de existir quando surge um poder mais forte e regulador. Essas pesquisas foram determinantes no desenho dos personagens do pai e da mãe da família Breves. Determinantes, também, na definição da classe social a que pertencem. Os Breves são latifundiários ligados à monocultura da cana de açúcar, que entraram em decadência depois do fim da escravidão, no final do século 19. Os seus rivais, os Ferreiras são latifundiários em expansão - criadores de gado.

Abaixo, alguns códigos estabelecidos por estas famílias na tentativa de regular as cobranças do sangue, num trabalho de condensação realizado por Sérgio Machado a partir do livro Lutas de Família no Brasil.

"A vingança é um dever irrestrito e indiscutível, de cuja obrigatoriedade não se pode fugir, sob pena de banição. Neste caso, a desgraça não é só individual, mas da família inteira".

"Lutar pela família é lutar pela própria sobrevivência. Fugir disto seria infringir a regra, ir de encontro ao costume, ameaçar a própria existência e o equilíbrio social".

"A hipertrofia do poder familiar e a fraqueza do poder público determinam o problema das vinganças privadas no Brasil".

"O dever de vingança cabe naturalmente ao parente mais próximo da vítima".

"Se o mais próximo dos parentes não cumprir o dever, o ressentimento do defunto se voltará contra ele".


Sobre o papel da mãe

"É de decisiva importância o papel das mulheres nessa conjuntura. É sempre raro que a vingança se desencadeie sobre uma mulher, e esta, também, só raramente leva a efeito uma represália em nome da solidariedade ativa da família."

"Em manter e estimular o ódio, (...), mantendo aceso o espírito da vindita, é ao que se reserva a função das mulheres nas lutas de família."

"Se no momento em que a violência deve desencadear-se não existirem adultos para exercer a represália, às mulheres e aos anciãos vai caber a tarefa de excitar os mais jovens a exercê-la um dia, alimentando o seu espírito de vindita."

"As mulheres usam de todos os recursos para estimular a luta e transformar a família de comunidade em comunhão. Se a vingança é de sangue, expõe as vestes ensangüentadas do defunto; vivem de luto permanente, não vão à rua, lamentam noite e dia o morto, lembrando e exagerando suas boas qualidades, excitando saudades, remorsos e desejos de vindita."

Sobre a trajetória da personagem central


A idéia de ser jurado de morte em decorrência do mando paterno simboliza o complexo de castração e a auto-anulação que a figura paterna impõe. Deste ponto de vista, tanto o pai de Tonho, quanto o pai da outra família representam este "pai universal", devorador, anulador e castrador. A mãe é uma pessoa totalmente dominada e omissa, não conseguindo exercer seu papel protetor contra esta figura paterna totipotente. Sendo assim, há a necessidade de ser introduzida outra figura femina no enredo: Clara, uma jovem circense que aparece na fazenda. Esta jovem atua como esta figura materna protetora que simplesmente não aceita a proposta de auto-anulação imposta pelo pai. Ela é mãe protetora e ao mesmo tempo mulher sensual e envolvente, conseguindo configurar a triangulação edípica que a mãe original não foi capaz de criar.


Porém, a questão não é tão simples: esta figura feminina mãe-esposa, traz consigo sua própria figura paterna e outro triângulo se forma. Se por um lado Tonho conseguiu romper com o mando do pai, ainda que interinamente, e correr ao encontro da mãe libertadora (Clara), jovem encantadora e ao mesmo tempo sábia, agora irá confrontar-se com uma nova figura paterna que não nos deixa claro qual sua posição em relação a Clara: amante? Padrinho? Tutor? Guardião? Obstáculo? O fato é que seja esta figura paterna positiva ou não, este homem, Salustiano, indubitavelmente não compactua com a vendeta, com seus códigos e com o curso auto-destrutivo de Tonho e de sua família. Contraponto perfeito para a figura feminina potente que aponta rumo à liberdade.

Neste ponto a encantadora personagem do irmão mais novo torna-se fundamenta: espontâneo, alegre, livre por natureza e saudável. É este irmão (Pacu) que faz a ponte entre Tonho e Clara. É este irmão que confronta o pai castrador. É este irmão que deixa-se imolar, oferecendo-se em sacrifício para colocar fim à vendeta. Quase que repetindo literalmente o episódio de Pátroclo na Ilíada de Homero, Pacu deixa-se confundir com Tonho e é morto em seu lugar, trazendo a liberdade para o irmão. Pacu é o protagonista no mais puro sentido grego da palavra: "o primeiro a morrer". Pacu é o "bode expiatório" que redime os pecados da família. Pacu é em última análise o "cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo". O preço a ser pago pela libertação do ego (Tonho) é sempre o mesmo: a morte da criança original. Seguindo o viés trágico que marca todo o enredo do filme, o pai castrador, tal qual Creonte em Antígona, acaba isolado e solitário, cercado por sua própria neurose, destino inevitável de todo tirano opressor.


Sobre o simbolismo

Sobre o filme, José Paulo Bandeira da Silveira escreve: "é admirável encontrar em um filme a construção, tão bem realizada, de um conceito de cultura política. E no filme, o espectador tem a experiência simbólica da sua cultura política. Para o espectador, o filme realiza a inscrição da sua cultura política no espaço simbólico universal. Neste riacho da caminhada, o espectador não é mais um espectador, ele é o sujeito que vive, com os personagens, a experiência da tragédia pós-moderna na superfície da cultura política. Neste plano do filme, o sacrifício não advém do dever, do super-ego; ele não remete o espectador para a esfera do dever da sociedade burocrática, ele é a vontade do ego modelada pelo desejo das criaturas maravilhosas que habitam a narrativa de Abril Despedaçado. No ego, o desejo e o princípio do prazer existem como fenômenos universais que dissolvem a ordem patriarcal; e fazem o espectador esquecer da ordem burocrática. Seria isto também uma alusão ao fim do poder repressivo na contemporaneidade? No Freud moderno, o super-ego é a instância do poder repressivo. Talvez uma das idéias do filme seja a de dar novos usos para o super-ego freudiano em crise. Há uma cena na qual o riso da família - a mãe e os dois filhos - faz o pai tirânico dar gargalhadas incontroláveis. O riso do pai patriarcal não é uma quebra no mecanismo fatal da cultura política do deserto? Ele não pode ser olhado como uma esperança de alteração da fatalidade secular? Na cena, o riso do pai estraga a festa de risos da mãe com os filhos. Tal riso tira o prazer do riso dos outros. A mãe e os filhos param de rir, e o riso tirânico ressoa sozinho no deserto de homens e idéias. Será que para Walter Salles, essa cultura eletrônica - que agencia o desejo e o princípio do prazer em uma escala industrial - é o riso patriarcal capaz de calar a festa da cultura brasileira?".

Ainda há outro simbolismo mais sutil que vale a pena ser explicitado: o fogo. Clara, faz malabarismos com o fogo: ousa tocar a chama e não se queima. Clara acende o fogo dos impulsos do Id e incendeia a alma de Tonho. O fogo do sol escaldante sobre a terra ressequida do deserto, o pai castrador e a mãe omissa, é substituído pelo fogo da paixão, pulsão libertadora: a leveza do trapézio e do corpo flutuante de Clara. Ela é clara e brilhante como a chama. Ela voa livre pelo ar representando a libertação do jugo do superego e da neurose. O fogo transformador que libera a energia presa na matéria. O fogo com consciência clara que ilumina os meandros obscuros do conflito e permite sua resolução.

Quando o velho cego mostra o relógio a Tonho e deixa claro que seus dias estão contados, mostra igualmente seu destino previamente traçado pela maldição familiar, tal qual Tirésias revela a Édipo seu destino maldito e adverte: “a sabedoria nem sempre é de proveito do sábio”. O velho cego diz: “Cada vez que o ponteiro do relógio se move, ele lhe mostra que há um minuto a menos”. Retomando o fio grego, há um rito familiar traçado pelos seus membros que realizam o papel, outrora, dos deuses: zelar pelo cumprimento da moira, destino cego, e inibir qualquer desmedida do herói da vez — como fazem os pais de Tonho quando ele leva Pacu ao circo.


Sobre o simbolismo do círculo Maria Célia Barbosa Reis da Silva e Neyde Lúcia de Freitas Souza escrevem: “Há ainda o círculo que aparece em duas cenas, cada uma delas indicando uma interpretação diferente: a roda de bois que é forçada a manter a mesma direção e produzir os mesmos resultados; e a roda da menina do circo que a eleva às alturas, deixando fluir sonhos e desejos. Essa última roda dura mais, dura um dia inteiro, não quer parar, quer ser eterna. A outra, a dos bois, está esgotada, mostra sinais de fadiga e de fracasso, sinaliza que é tempo de parar, enquanto seu “dono” teima em mantê-la sob controle rigoroso e desprovida de autonomia, embora talvez de antemão já saiba que um dia vai falhar... Daí o nem, da família: Breve. Naquela casa no meio do sertão, não há alegria nem felicidade. Só a mesmice de ações e de comportamentos repetitivos. A casa do sertão é suja, as roupas dos moradores encardidas, o chão barrento, não há tempo para o si mesmo. A vida estancou. Há repetição de gestos, atos e palavras, e nada avança, pelo contrário, o que ocorre é estagnação ou regressão: aos mesmos atos se responde do mesmo modo. Nem a criança, com sua natural espontaneidade, consegue se expandir. Os sonhos do Menino são tolhidos, suas fantasias abafadas, não há permissão para mudar a roda dos bois domados. Quanto ao Tonho, não concorda com a roda da vida que lhe é traçada, mas faz parte dela. E dá asas aos seus desejos, permitindo-se escutá-los, quando se abre para outros mundos, quando encontra alguém tão preso ao destino quanto ele, e aí se reflete no outro. Sua tarja negra cai quando ele está pronto para deixar fluir seu inconsciente, buscar seu próprio destino. Não importa se ele e Clara vão ficar juntos. Provavelmente não ficarão. Importa é que cada um impulsionou o outro para olhar para si mesmo. Agora o que Tonho quer é ir ao encontro do mar, mergulhar em seu inconsciente e dele puxar seu destino. Não há saída, senão pular de uma roda para outra, até achar o equilíbrio. O balanço impulsiona para o equilíbrio, trazendo a possibilidade de olhar a mesma história sob novos ângulos”.

Veja o Trailer:

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