09 julho 2015

Entrevista com Bernardo de Gregorio






·         O que o surgimento da Filosofia representou para a vida das antigas civilizações?


A grande "virada" que ocorreu com o surgimento da Filosofia foi o aparecimento do pensamento laico. Até então, o pensar humano sempre esteve atrelado à religião e, por ser sagrado, era fixo e havia muito pouco espaço para o debate. A partir da laicização do pensar, a discussão passa a ser o centro da atividade intelectual e futuramente iria dar origem à noção de política, com o debate aberto sobre as leis e os costumes e a reflexão do pensar sobre si mesmo, na Filosofia propriamente dita.

Com o passar do tempo, a racionalidade grega foi superando a noção de religião e tornando-se de sacra em laica. Pela primeira vez na História apareceu na Grécia Antiga, na região da Jônia (atual Turquia) um pensamento laico puramente lógico e desvinculado totalmente da ideia do sagrado. Estes primeiros filósofos jônicos (pré-socráticos) nada mais fizeram do que transpor ipsis literi a Mitologia Grega em Filosofia. Mais tarde Aristóteles de Atenas explicaria a gênese do pensamento filosófico da mesma maneira como se explica a gênese do pensamento mitológico: "é através do espanto que os homens começam a filosofar"(1). Os filósofos sempre tentaram explicar a Natureza e seus fenômenos, caindo inevitavelmente em contradição com as ideias de seus companheiros de profissão. A Filosofia expandiu e acabou englobando áreas para muito além da descrição da natureza e seus fenômenos, incluindo em si o estudo do ser humano e todos os fenômenos relacionados a ele e ao seu pensamento. No entanto, as contradições entre os filósofos continuariam a afligir o espírito humano por séculos, quer em relação aos métodos, quer em relação às teorias, quer em relação aos fenômenos. A Filosofia incumbiu-se finalmente de "assassinar" os deuses de onde havia nascido, afirmando que os deuses não passavam de alegorias místicas para as forças da natureza que requeriam uma explicação lógica e jamais religiosa. Se os deuses existissem, eles seriam, tal qual os mortais, constituídos por átomos e submetidos às implacáveis e imutáveis leis naturais.


·         Você acredita que o surgimento da Filosofia rompeu com o mito? Ou você acha que ela representou uma continuidade?

São possíveis ambas as afirmações, dependendo da maneira como se aborda o fato. Há quem considere o povo grego como que um gênio que realizou o milagre do nascimento da Razão. Há quem pense, no entanto, que não há mais que um eterno retomar, sempre fundamentado na origem ocidental. Há quem considere que deste gênio, simplista, harmônico e luminoso, emergiu a Filosofia, como culminância de um povo. Há, no entanto, quem imagine que os gregos sempre estiveram imersos em guerras contínuas e em desespero, “dilaceramento trágico e desmedido, de tal forma que a Filosofia exprime a obscuridade do gênio helênico” (1).

O que ocorreu é que a Mitologia deu origem à Filosofia, cambiando o sacro pelo laico, o que, evidentemente, alterou radicalmente o processo do pensar. Sobre o tema, introduz-nos Pessanha: “durante muito tempo o problema do começo histórico da Filosofia e da Ciência Teórica foi colocado em termos de relação Oriente versus Grécia. Desde a própria antiguidade, confrontaram-se duas linhas de interpretação: a dos orientalistas, que reivindicaram para as antigas civilizações orientais a criação de uma sabedoria que os gregos teriam depois apenas herdado e desenvolvido; e a dos ocidentalistas, que viam na Grécia o berço da Filosofia e da Ciência Teórica (2). Quando Hesíodo descreve os persas, há a descrição da cultura oriental com fatos tais como o estudo dos astros pelos babilônicos, o da matemática pelos egípcios, o dos céus pelos caldeus ou a criação da moeda pelos fenícios. Platão e Aristóteles insistem que tais ideias foram apropriadas pelos gregos, porém isto não quer necessariamente dizer que a Filosofia é oriental. O primeiro motivo é a ideia de que o Oriente é um lugar mítico e especial, por ter sido lá que o ser humano apareceu, como criação direta dos deuses, na metáfora da idade do ouro. O segundo, é que o pensamento filosófico é perturbador por questionar os deuses e as instituições; assim, uma ideia de tradição, funciona como uma espécie de salvaguarda contra possíveis ataques. As cosmogonias orientais são então, retomadas pelas cosmologias gregas.


·         Quais os motivos da mitologia causar tamanho interesse hoje, como vemos em livros, filmes e séries de TV?

O ser humano sempre necessitou de um ambiente projetivo onde pudesse ver-se e antes de tudo reconhecer-se ao observar fora si os arquétipos atemporais de sua mente em funcionamento. Este espelho sempre foi-nos apresentado pelas artes. Na Pré-História reuníamo-nos em torno do fogo em contávamos histórias com encenações dramáticas e desenhos nas paredes das cavernas. Na Grécia Antiga os aedos, menestréis ambulantes, cantavam os feitos dos heróis e dos deuses. Na Idade Média, os bardos cantavam os feitos dos reis e os padres contavam sobre a vida dos santos. A Literatura ocupou-se da tarefa de manter vivas todas estas histórias, desde contos de fadas seculares para as crianças, até deuses e heróis para jovens. O cinema e a TV hoje em dia são responsáveis por levar ao grande público estes temas eternos e de despertar a curiosidade sobre a Mitologia. No entanto, noto quer muitas vezes há uma deturpação muito grande feita em nome de uma suposta maior aceitação das plateias e, particularmente, entendo esta deturpação como um grande desserviço: uma pessoa vai ao cinema e espera conhecer, ainda que superficialmente, a história de Perseu e na verdade recebe uma narrativa completamente modificada, onde apenas o nome "Perseu" foi mentido. Claro que desde sempre "quem conta um conto aumenta um ponto" e que novas versões devem ter espaço para modernizarem o mito; mas deve haver um certo respeito para com o centro do mito e suas características básicas e noto que muitas vezes este respeito não existe. No teatro, eu mesmo tive a oportunidade de participar de várias adaptações de mitos que receberam roupagens contemporâneas e novos ressignificações, mas a essência do tema central e os valores psíquicos intrínsecos foram preservados.

·         Ainda é possível perceber algum legado da mitologia em nossos hábitos?

No Renascimento, Galileu Galilei foi o primeiro a levantar a necessidade de que se provassem as teorias filosóficas através da experimentação. A Filosofia então passaria lentamente a tornar-se obsoleta e cederia seu lugar à Ciência. René Descartes rompe com o passado e inaugura sua visão de mundo em que as tradições filosóficas já não mais queriam dizer nada. O Ser Humano passou a procurar desesperadamente provas concretas e experienciáveis (reprodutíveis) de que suas teorias são de fato. Nasceu o Método Científico e com ele um importante passo em direção à laicização do pensamento foi dado. Atualmente a Ciência é bastante confiável e goza de largo crédito junto ao público especializado e leigo, ao passo que as explicações filosóficas estão, digamos, um tanto "fora de moda". Quando se diz hoje em dia que algo é "científico", a maior parte das pessoas entende que se trata da mais pura e irrefutável verdade;  quando, de fato, deveria entender que se trata de um resultado obtido através do Método Científico, ou seja: da tentativa e do erro e da experimentação. Se já existem "narizes torcidos" para as ideias filosóficas quando confrontadas às ideias científicas, as ideias mitológicas como explicações para os fenômenos naturais estão totalmente fora de cogitação hoje em dia e beiram o absurdo. A laicização do pensamento é tal que há quem diga que os mitos formam um conjunto que deveria receber o nome de "MINTOlogia".

Existe então uma espécie de preconceito generalizado contra os pensamentos não-científicos, especialmente contra os métodos filosóficos especulativos e o pensamento mítico. Porém, o estudo da Mitologia não pode ser visto com um interesse meramente histórico. Além de ser a chave para o entendimento de grande parte da produção artística de todos os séculos, uma vez que pintores, escritores, dramaturgos e compositores sempre basearam suas obras em mitos, especialmente gregos; a Mitologia Grega é a também a base do pensamento ocidental e guarda em si a chave para o entendimento de nosso mundo, de nossa mente analítica e de nossa psicologia. Ao se comparar a Mitologia Grega com as demais mitologias (africanas, indígenas, pré-colombianas, orientais, etc) descobre-se que há entre todas elas um denominador comum. Algumas vezes estaremos frente aos exatos mesmos deuses, apenas com nomes diferentes, sem que exista nenhuma relação histórica ou geográfica entre eles. Este material comum a todas as mitologias foi descoberto pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung e foi por ele denominado de "Inconsciente Coletivo". O estudo deste material revela-nos a mente humana e seus meandros multifacetados. Os mitos são atemporais e eternos e estão presentes na vida de cada ser humano, não importa em que tempo ou em que local.

O estudo da Mitologia torna-se então essencial a todo aquele que pretende entender profundamente o ser humano e sua maneira de ver o mundo. Os deuses tornam-se forças primordiais da natureza psíquica humana e readquirem vida e poder. Nota-se a sua utilização no cotidiano em cada pequeno detalhe. A existência real dos deuses mitológicos antigos em todas as suas roupagens étnicas reafirma em última instância a ideia de divindade em si: através dos deuses encontra-se a "ideia de Deus" e, através dela, Deus em toda sua misteriosa ambiguidade. A Mitologia transfere o conhecimento humano de um plano meramente materialista (científico) para um plano psíquico vivo (Inconsciente Coletivo) e deste, para um derradeiro plano espiritual. O desafio está em realizar a verdadeira "religião": a "religação" do mundo externo ao mundo interno, do concreto ao abstrato, do material ao espiritual, do mortal ao imortal e eterno.

·         Qual a sua sugestão de leitura para quem se interessa por esse temática?

Em qualquer livraria encontram-se facilmente inúmeros livros sobre mitologias de todas as origens; no entanto, nem sempre se pode confiar em qualquer livro que, apesar de bem intencionados, por vezes apresentam discrepâncias importantes ou trazem discussões superficiais ou nenhuma discussão. Num âmbito nacional, eu entendo que Junito de Souza Brandão seja uma referência bastante segura e ampla sobre a Mitologia Grega e seus campos de debate e recomendo a leitura de sua coleção em três volumes "Mitologia Grega" (3). Deste mesmo autor, costuma ser bastante útil o "Dicionário Mítico-Etimológico Da Mitologia Grega" (4). Na Internet igualmente há muitos sites sobre o assunto e que, igualmente, nem sempre são confiáveis. Um extremamente bem feito e que está cima de qualquer suspeita é o do Prof. Wilson A. Ribeiro, chamado "greciantiga.org" (5).






Referências:

1.            Vernant, J.P.;  Mito e Pensamento entre os Gregos”,
                Cap. VII Difusão Européia do Livro,
                Ed. Da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1973

2.            Pessanha, J. A. M.et cols.;
                História das Grandes Ideia do Mundo Ocidental,
                Introdução; in Os Pensadores, vol. I.
                Ed. Abril Cultural, São Paulo, 1972.

3.            Brandão, J. S.;
                Mitologia Grega, vols 1, 2 e 3.
                Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1986

4.            Brandão, J. S.;
                Dicionário Mítico-Etimológico Da Mitologia Grega, vols 1, 2 e 3.
                Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 2008

5.            http://greciantiga.org/


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