por Bernardo de Gregorio
Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta
Segundo Sigmund Freud e, em especial, segundo seu discípulo Wilhelm Reich (com o qual eu me identifico muito mais do que com o "Pai da Psicanálise"), existem fases bem marcantes do desenvolvimento da personalidade que ocorrem desde o nascimento (ou ainda intra-útero) até mais ou menos a idade de 5 ou 6 anos. Todo este desenvolvimento está baseado na idéia de prazer e desprazer, aliás, pode-se dizer que de certo modo toda a vida humana se baseia nestes dois conceitos subjetivos. Compartilham destas idéias pesquisadores como Carl Gustav Jung e Melanie Klein, também discípulos de Freud. Diferenças de nomenclatura e de alguns conceitos há, é certo, mas com idéias centrais sobre o desenvolvimento da personalidade bem similares. Desta forma, fala-se de libido, como forma de expressão desta busca de prazer, fazendo-se inevitavelmente associações sexuais. É claro que a sexualidade e a libido não são vivenciadas por uma criança da mesma forma com que os adultos o fazem. Pensar assim seria um absurdo! Porém o impulso sexual nascente existe e está lá desde muito antes do nascimento, como esta eterna busca pelo prazer que marca cada um de nós, Seres Humanos.
Imaginemos um feto vivendo em seu mundo líquido lá no útero. Tudo é prazer! Nada o incomoda: não há frio, não há fome, não há sede, não há mundo exterior. O feto está envolto em uma vivência de eterna felicidade, ele está no paraíso, por assim dizer. Nenhum esforço, nenhum problema, apenas sonhos idílicos e delicados em tons lilases. Uma grande ruptura desta eternidade ocorre com o parto. O Parto talvez seja a maior de todas as crises que uma pessoa enfrenta em sua vida, apenas comparável à morte (talvez). Já no início do trabalho de parto a vivência paradisíaca é quebrada por desagradáveis contrações uterinas e o feto se sente rejeitado pela mãe-útero. Seu mundo está preste a ruir para todo o sempre. Com o nascimento propriamente dito, momentos de terrível desconforto são experienciados pela primeira vez: o contato frio e rude com o ar, a respiração que infla dolorosamente seus pulmões, a sensação de tato que fere sua pele delicada, a luz que agride seus delicados olhos, os sons que o aterrorizam. Condenado a viver daquele ponto em diante em um mundo hostil e rude, este recém-nascido terá que se alimentar até o último de seus dias para se manter vivo.
Inicia-se neste ponto a primeira fase do desenvolvimento da personalidade que é conhecida como “fase oral", onde a libido infantil se concentra na zona erógena da boca, representante físico da imperiosa necessidade de alimentação. Todo o mundo do bebê se resume na sensação de prazer total quando ele mama e se sente plenamente satisfeito. Mas sempre há a fome, que lhe traz aquela sensação de morte e destruição eminente. Pelas graças dos céus, há aquela entidade “supra-sensível” conhecida como “seio materno”, que evidentemente pode muito bem estar representada por uma mamadeira ou talvez pelo distante consolo de uma chupeta. Normalmente este ser, o “seio materno” vem acompanhado daquele agradável pulsar cardíaco que traz doces lembranças do útero, por aqueles odores conhecidos e reconfortantes, por aquela voz aconchegante. Mas o que fazer quando o tal “seio materno” não está lá? A única alternativa é chorar a plenos pulmões e padecer de uma angústia infinita. Para o bebê não há meios termos: ou ele está no céu, ou no inferno. Não existem nem o mundo externo, nem as demais pessoas e objetos que dele fazem parte. É uma vivência autista e extremista. Mais ou menos assim se passa primeiro ano de vida.
Por volta de 1 ano de idade o bebê já engatinha e começa andar. Assim, seu isolamento do mundo torna-se muito menor e o espaço se abre aos seus sentidos. Com a exploração do mundo à sua volta, aparecem também as primeiras regras, os "pode" e “não pode" desta vida e, com eles, as primeiras frustrações oriundas da funesta palavra "não". Nos saudosos tempos do berço o bebê jamais ouviu esta palavra desagradável que o perseguirá por toda sua vida. Como enfrentá-la? O problema aqui é que o bebê não tem a menor idéia do que é permitido e do que é proibido. Ele deve descobrir por si só e pelo método da tentativa e erro (na verdade muitos erros!). Um dos "não pode" mais importantes é a idéia de controle dos esfíncteres: fazer “cocô” no piniquinho "pode", em qualquer outro lugar (como no tapete da sala, por exemplo), "não pode". Como entender isso??? Este é um dilema insolúvel para todo Ser Humano nesta idade. Além disso, resolvido este primeiro enigma, outros imediatamente se apresentam: onde fazer “xixi”??? Como saber quais objetos "pode" (o chocalho, por exemplo) e quais "não pode" (o vaso Ming de estimação da mamãe, por exemplo, ou a convidativa tomada na parede da sala).
Frente a todo este complexo universo que se apresenta ao bebê de repente, entre uma crise existencial e outra, a criança acaba por deduzir que ele jamais aprenderá tudo isso. O bebê só faz "cagada" (literalmente): a mamãe o odeia, o papai tem vergonha dele, é uma criança feia e má. Sua única chance de sobrevivência é assumir esta inferioridade frente ao universo e tomar seu lugar no “hall” dos perdedores e fracassados. Esta é a fase anal masoquista: se a criança é punida, ela se sente confortável e de alguma forma imagina que realmente merece ser o objeto de todo este castigo divino. Com o tempo o “não” passa a soar como música aos seus ouvidos: a mamãe briga, mas esta é uma forma de obter atenção sobre este “miserável ser”. O papai ralha, mas neste momento ele existe frente a seus olhos. Que outro remédio a criança “feia e má” pode esperar deste mundo cruel? Ele curva sua coluna e recolhe à sua insignificância... Neste período, a zona erógena mais importante passa a ser o ânus. Esse tal esfíncter que o levou a desgraça e à ruína é o símbolo máximo de todo este processo e, evidentemente, o que sai dele: o “cocô”!
Mas, nem tudo é assim tão sombrio: um dia, mais cedo ou mais tarde, a criança aprende a maioria dos "pode" e "não pode" que seu mundinho doméstico possui. É chegada pois a hora da doce vingança! Agora a criança se transforma em "cri-onça" e parte para a tortura deliberada dos pais: uma revanche totalmente justa dos tempos de masoquismo. Como é divertido ver a mamãe gritando e arrancando os cabelos quando a gente finge que vai derrubar o vaso Ming! Como é deliciosamente eletrizante ver o papai desesperado quando a gente finge que vai se jogar do galho da árvore, sabendo que isso o preocupa! Mesmo que eles bronqueiem, intimamente a criança sabe quem está no controle da situação: ELA! A "cri-onça" é o centro das atenções familiares (por bem ou por mal!), a "cri-onça" manipula todos os seres do (seu) mundo, como um deus despótico e vil. Ela, e somente ela, possui o poder sobre o bem e o mal do mundo, sobre a felicidade de todos que a rodeiam. Este período de controle coincide com o controle perfeito dos esfíncteres (inclusive o “xixi” de noite) e é conhecido como fase anal sádica. Neste período, o ânus continua a ser a zona erógena principal, mas de outra forma: a retenção das fezes é que lhe dá a sensação de onipotência vivida como prazer, não mais a liberação. Evidentemente a urina também exerce o mesmo papel manipulador e aos poucos a criança descobre também a zona erógena genital.
Depois disso, dos 3 anos e meio aos 4 e meio, vem o que se chama de período pré-edípico, seguido pela fase edípica clássica ao redor dos 5 anos. Estas fases são bem mais complexas do que as anteriores e é aqui que haverá a separação dos gêneros masculino e feminino e a formação da identificação com um deles e o contato com os impulsos hetero e homossexuais. Resumidamente, por não ser de tanto interesse aqui, podemos dizer que os meninos rapidamente descobrem que possuem um “pipi”. O papai também tem, mas a mamãe não tem... Como pode ser isso? O “pipi” do papai lhe dá super-poderes extraordinários! Ele pode falar com aquela vozona grossa, ele é alto e forte. Até mesmo a mamãe, que também tem lá seus super-poderes, recua frente o poder do “pipi” do pai. Se o menino também tem um “pipi”(se bem que nada comparável com aquele lá do papai), ele também deve possuir esses super-poderes. Porque não usá-los para conseguir tudo o que quer? Mas como? Ora, exatamente como faz o papai: contra a mamãe. E assim o menino faz.
Totalmente seduzida e “domada” pelos poderes mágicos do “pipi”, a mamãe se torna dócil, meiga e gentil. A mamãe faz aquelas comidas gostosas, faz carinho e brinca bastante. Pena que de noite o papai volta lá do trabalho e tudo acaba, porque tem aquela coisa que se chama “hora de dormir”. O papai usa o poder do “pipi” dele p’ra expulsar o menino da presença da “fada madrinha” e o tranca lá naquele lugar escuro e chato chamado "quarto". O papai é assim como um “dragão malvado” que cospe fogo pela boca, um “gigante horroroso” e forte que leva a “fada madrinha” p’ra lá... O menino odeia o pai e ama a mãe.
Para a manina as coisas são diferentes: o papai possui um “pipi”, mas ela não... Ela é assim frágil e delicada como a mamãe. Por que? Ora, deve ser porque a mamãe fez alguma coisa errada com ela ou porque a mamãe cheia de inveja cortou o “pipi” dela fora. Que “bruxa malvada”! Ela tem que ficar ali o dia todo à mercê daquela “madrasta má” que faz torturas horríveis: penteia o cabelo da gente, coloca aqueles sapatos apertados e aquelas roupas com babados. A maldita “bruxa” também não deixa a gente fazer o que é legal e dá bronca o tempo todo! Mas de noite (ah de noite!) o papai volta lá do trabalho em seu cavalo branco e com sua grande espada acaba com o suplício da menina. O papai a coloca no colo e dá muitos beijos. O papai até lhe chama de “minha princesinha”. A menina odeia a mãe e ama o pai.
Mas num dia nefasto, tanto o menino quanto a menina se dão conta de um fato que até então havia lhes passado despercebido: o papai e a mamãe são casados! Isso significa que quando a criança está exilada lá no quarto, muitas coisas acontecem... Como coisas podem acontecer sem que ela, o centro do mundo, esteja presente??? Que horror! Ela não é o centro do mundo! O “gigante mau” é casado com a “fada madrinha”?!!! Ou por outra: a “bruxa má” é casada com o “príncipe encantado”?!!! Isso não pode ficar assim: a criança dará um jeito de destruir isso tudo! Ela usará tudo o que aprendeu lá na fase sádica anal, ela usará os recursos depressivos lá da fase anal masoquista e, se necessário for, até abrirá o berreiro no meio da noite, lembrando-se da fase oral. Vale tudo nessa guerra! Eis o Complexo de Édipo.
Mas a batalha é inglória: o papai está irremediavelmente casado com a mamãe... Mas, se o menino pensar bem verá que o papai “lá nas férias” até que é bem legal: o papai joga bola com a gente, o papai brinca de lutar, o papai conserta o carrinho que quebrou. A mamãe não faz nenhuma dessas coisas direito! Da mesma forma, a menina descobrirá que a mamãe faz coisas interessantíssimas: ela faz poções mágicas fantásticas no fogão, ela sabe usar maquiagem e perfumes sedutores, ela entende destas “coisas de mulher” que o papai não entende direito. O papai é meio abrutalhado e bobão... Desta forma, menino e menina percebem todos os pontos positivos e negativos de ambos o sexos e conseguem desenvolver uma percepção bem mais apurada dos gêneros humanos. No final das contas, a mamãe não é nem uma “bruxa má”, nem uma “fada madrinha”: ela é mulher! O papai não é nem o “dragão que cospe fogo pelas ventas”, nem o “príncipe valente”: ele é homem! Sendo assim, menino e menina adquirem a permissão de abrir mão dos estereótipos perfeitos e se assumirem tal qual são: com virtudes e defeitos, com prós e contras, como homem e mulher. É claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas a semente está lançada.
Dependendo do que tenha ocorrido nesta épocas, nós podemos ter uma influência maior ou menor de cada uma destas fases e atuar a partir destas influências na idade adulta. Sim, porque dificilmente (para não dizer nunca) a vida de alguém transcorre às mil maravilhas como foi aqui descrito, não é mesmo? Sempre haverá uma falha de desenvolvimento aqui e outra ali que fará com que determinados mecanismos, típicos de cada uma destas fases, fiquem mais marcantes em nossa personalidade. Quando uma atuação de qualquer destas fases se dá na idade adulta de forma puramente inconsciente e neurótica, resquícios trazidos à tona inevitavelmente pela super-crise que se chama adolescência (ou “aborrecência”, como gosto de chamar estes “anos rebeldes”), sofreremos e faremos o mundo à nossa volta sofrer com nosso caráter. Mesmo depois de grandes, nós, réles mortais, vez ou outra nos deparamos com nossas porções neuróticas. Isso ocorre toda vez que está em jogo uma questão que envolve autoridade: no trabalho, frente ao policial que quer nos multar, com nossos subalternos, etc. Quando nos damos conta destes nossos (podemos dizer “ridículos”) impulsos primitivos, podemos canalizá-los para formas de expressão mais agradáveis e menos perigosas. Reprimi-las somente piora o caso! O mais aconselhável é a utilização da arte como via de expressão: qualquer atividade artística, sendo livre e criativa, é válida e aqui não importa a mínima se o resultado desta expressão artística é feio ou bonito, se faz sucesso ou não: o que importa é expressar o Inconsciente! Superar ou não estas “limitações” que trazemos da infância não tem a menor importância. O que importa é deixar fluir sua libido, sentir prazer, proporcionar prazer e ser feliz!
Um comentário:
Gostei muito do blog. Ele é lindo
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