“O ecstasy, lentamente, passava de acessório a protagonista das baladas”.(André Meyer em “Lindo de Doer”)
Eu sempre digo que não gosto do Século XXI e ainda bem que só faltam 90 anos para ele acabar! Digo isso, porque uma transformação estranha, sinuosa e maligna deu-se no fim do século passado, início deste. Sempre tive dúvidas, como bom libriano, se esta noção se dava por causa de mudanças pessoais ou se houve de fato uma mudança geral na virada do século. Foi com isto em mente que comecei a leitura do recém lançado livro autobiográfico de André Meyer, “Lindo de Doer”. A comparação entre os pontos de vista de pessoas com trajetórias de vida tão diversas como eu e André, mas que por algum tempo gravitaram um mesmo universo, poderia me dar uma noção da resposta que procurava.
Pioneiro dos piercings no Brasil, André viajou o mundo em busca de referências em arte corporal. Na década de ‘90, sentiu na pele a contracultura londrina, morou em Goa, na Índia, visitou retiros hindus, conviveu com índios no Xingu, participou de festivais religiosos às margens do Ganges e pagãos no deserto de Black Rock, Estados Unidos. Em suas viagens, suspendeu-se por ganchos cravados na pele, recebeu pragas e bênçãos de homens santos, quase morreu de fome, de intoxicações alimentares e de quedas de moto. Experimentou substâncias entorpecentes, descobriu o Yoga e tornou-se vegetariano. Como diz o subtítulo, “Lindo de Doer” são mesmo piercings, viagens estéticas, eróticas e esotéricas.
Em seu livro, André escreve: “a música eletrônica passou a ser cada vez mais associada à venda e ao consumo de drogas. Coisas bizarras começaram a acontecer. Lembro de uma noite, no Hell’s, quando, no meio da balada, o som parou, acenderam-se todas as luzes e de uma hora para outra o lugar estava cheio de policiais, esquadrão de elite, com máscaras ninja e metralhadora em punho. Entraram apavorando”. Acontece que eu estava neste mesmo local em São Paulo, nesta mesma noite. Quer dizer: “noite” é a forma como o André se refere, mas na verdade a festa chamada “Hell’s” ocorria nas manhãs de domingo, famoso espaço after hours. E foi esta diferença de conceito que fez toda a diferença: eu devo ter chegado por lá por volta das 5 manhã, fiquei um pouco e me senti cansado, estranho, com um sentimento de urgência. Fiquei no máximo uma meia hora e fui embora dormir, sob os protestos de alguns amigos. Foi depois que eu sai, que toda a ação policial se desenrolou.
No livro, André continua: “nas festas também era cada vez mais comum aparecerem policiais à paisana prendendo a molecada ou pedindo uma grana de propina p’ra que a balada pudesse continuar”. Este tipo de ação e reação continuou a acontecer amiúde, isto é: uma liberação muito maior dos costumes que causou uma abertura psíquica, ideológica e cultural que, por sua vez, abriu espaço para a infiltração de exageros e interpretações dúbias de todas propostas, base moral para “justificar” uma reação repressiva em série por parte dos conservadores, culminando com a típica corrupção de certas autoridades.
Por exemplo, uma invasão policial se deu em São Paulo na boate GLS SoGo, na noite de 1º de junho de 2000, seguindo os mesmos moldes. Eis o depoimento indignado de uma testemunha da invasão da boate: “na noite de quinta-feira, presenciei uma cena típica da época do auge da ditadura militar: a invasão por policiais civis da boate SoGo, na região dos Jardins, em São Paulo. Como justificativa para o comportamento hostil e intimidatório, alegaram que a casa seria ‘lugar de prostituição e drogas’. A partir de tal presunção, arrogaram a si a prerrogativa de cercar o prédio com três viaturas, invadi-lo aos berros, humilhando freqüentadores e funcionários. Além da arrogância e da prepotência, demonstraram preconceito por se tratar de uma casa noturna GLS, embora freqüentada igualmente por moças e casais héteros, pretenderam ver ali um ‘antro de pouca-vergonha e indecência’”.
Fica claro o embate entre forças antagônicas, não? Uma força libertária e uma força repressora se enfrentam mais uma vez, tal como ocorreu ao longo de toda História. As turbulências que observamos em todos os setores sociais e a turbulência que experimentamos internamente, psicologicamente, são os frutos deste confronto. Porém aqui, percebem-se nuances ambíguas de ambos os lados. A reboque com a idéia liberal, infiltram-se forças escusas, disfarçadas, lobos em forma de cordeiros. Diz André: “quando ficou claro que as raves podiam render realmente muito dinheiro, surgiu uma porção de aproveitadores em busca de lucro (...). Assim, aos poucos, o objetivo das raves foi deixando de ser a diversão e a confraternização para se tornar um negócio, apenas business e salve-se quem poder!”. Esses interesses vão desde empresários ambiciosos desprovidos de preocupação cultural, passando pelo tráfico de drogas descarado, até o útil efeito colateral de “zumbização” de uma boa parcela social que se coloca dócil frente às manipulações políticas e econômicas de eminências pardas.
A Cultura Clubber aparece então como o movimento de contra-cultura do século XXI. Gerado pela frustração do pós-tudo (pós-moderno, pós-hippie, pós-punk, pós-dark, pós-AIDS), o impulso clubber é uma proposta sem proposta, uma pura e simples alienação do tempo e do espaço, impulsionado pelos psicodélicos. A fuga da realidade, o hedonismo exacerbado de um pensamento cape diem, o desdém pela cultura, pelos valores sociais e pelo conhecimento, a simples auto-anestesia como solução e o repúdio a tudo e a todos que os possam fazer acordar deste transe perpétuo são suas marcas registradas. Incrivelmente, a Cultura Clubber englobou em si elementos desconexos herdados de movimentos de contra-cultura anteriores, tais como o misticismo e a espiritualização Hippie, a estética do modernismo, do psicodelismo do Sci-Fi e a depressão e o tédio Dark, a anarquia Punk. Atualmente, no entanto, estes atributos acabam sendo usados de forma esvaziada de seus significados culturais originais. E assim chegamos ao famoso Século XXI e assim passou a primeira década do famoso século. Famoso, porque muitas projeções e esperanças foram nele depositas, justamente por causa dos avanços cognitivos e tecnológicos. A Ficção Científica tornou-se um arauto da Nova Era e durante todo o Século XX anunciou este “admirável mundo novo” do porvir. Inacreditável (mesmo!).
Em 1999 tive a feliz oportunidade de assistir a apresentação integral de Fausto de Goethe, incluindo a primeira e a segunda partes. Esta apresentação dura 24 horas, divididas ao longo de uma semana e acrescentada de várias palestras e cursos paralelos e ocorre a cada 4 anos no Goetheanum, na cidade de Dornach, na Suiça. O tema “Fausto” me fez refletir sobre a questão contemporânea da humanidade: Mephisto abrindo as portas deste “admirável mundo novo” e minimizando ao máximo a morte da jovem Gretchen. Mas alguma coisa se perdeu! Gretchen foi sacrificada neste processo e Gretchen é a alma humana! Na monumental e absolutamente prospectiva obra de Goethe, Mefistófeles diz a Fausto: "com essa dose no corpo, logo vês Helena de Tróia em qualquer mulher". Mephisto 2000 diria o mesmo, mas referindo-se ao ecstasy. Segundo a Psicologia Analítica, teoria de Carl Gustav Jung, este efeito "Helena" refere-se à Ânima arquitípica, é a encarnação da Ânima Mundi. Porém aqui temos uma clara banalização, até mesmo uma profanação, pode-se dizer, desta que deveria ser a encarnação humana da Deusa, da Grande Mãe. Gretchen foi trocada por uma Helena lisérgica, artificial e plástica: silicone e alucinação.
Tal qual Fausto, nossa sociedade está desesperadamente em busca de sua própria natureza espiritual e não sabe nem ao menos que é exatamente isto que lhe falta. Devaneia em busca de uma resposta exterior que lhe supra as necessidades. Vivemos a era Pós-Tudo, onde tudo já foi feito, até mesmo no âmbito da religião e da Espiritualidade. Todos os paradigmas já foram devida e sistematicamente demolidos e o que resta hoje é uma profusão de doutrinas religiosas em constante conflito entre si e que nada mais provocam no Ser Humano do que angústia. Resumindo: o Ser Humano vive uma era sem sonhos, sem parâmetros e sem absolutamente nenhum referencial inquestionável. Na falta de um deus para reverenciar, o Inconsciente imediatamente procura qualquer ídolo que o substitua, nem sempre de forma adequada e coerente. Este processo recebe o nome de "idolatria”. É lógico que por trás disto há uma gigantesca mola propulsora, fruto de uma engrenagem social: o consumismo. Os mercados devem ser expandidos. Enquanto muitos partem nesta viagem alucinada, outros, materialistas, aproveitam-se da situação para lucrar a qualquer custo: dinheiro, poder, acúmulo. Uma das razões para a manutenção deste arrastado pesar, é a capacidade inescrupulosa que alguns poucos têm de ludibriar e iludir o semelhante com técnicas cada vez mais certeiras de usar nossa própria busca pela felicidade como isca para nos empurrar goela abaixo as mais estranhas idéias e crenças. Pobres almas essas que se iludem ao iludir... Não percebem que fazem com que se percam almas de semelhantes e, para tal, perdem-se suas próprias?
Coroando este panorama voltam, vindas diretamente da Idade das Trevas, forças repressoras e controladoras que querem limitar o Ser e sua liberdade. Aproveitam-se do momento delicado e atacam como nunca, como se estivessem, oportunistas, apenas esperando uma brecha. Sim: religiões rígidas e dogmáticas que se multiplicam, movimentos políticos totalitários, moralismos ressuscitados do inferno e a força bruta que se impõe por si mesma. Em nome da salvação estes “Novos Cruzados” avançam: reconquistarão as “Terras Santas”, expulsarão o inimigo, vingarão a destruição das cidades! Nada mais é seguro e ninguém mais é confiável: nada nem ninguém acima de qualquer suspeita e espiões eletrônicos estão por todos os lados! Tudo parece estar se encaminhando de uma maneira errada e os descaminhos não são apenas externos: algo de errado ocorre também dentro das pessoas. A materialização do pesadelo de Orwell na forma do Big Brother: câmeras espalhadas por todos os lugares, olhares fiscalizadores que nos acompanham, olhos no céu sob forma de satélites espiões, rastreamento eletrônico de cada transação monetária, de cada mensagem enviada e recebida, de cada imagem processada.
Então, alguma coisa se perdeu com o fim do Século XX e esta perda é simbolizada pela morte de Gretchen, pela perda da Ânima, pela desconexão do humano com sua alma. Se algo não for feito com urgência, esta alma pode ser perdida para sempre. O Terceiro Milênio nasce, portanto, com o destino da Humanidade envolto em um delicado limiar: por um lado toda a herança esquizofrênica, segregacionista e preconceituosa e, por outro, o alvorecer de uma Nova Era, onde é retomado o rumo à liberdade, à igualdade e à fraternidade. A via para se atingir este novo degrau evolutivo é a “empatia”: capacidade absolutamente humana de conseguir se colocar no lugar do Outro, a ponto de nos esquecermos por uns instantes de nós mesmos e conseguirmos sentir como o Outro percebe sua própria vida, a nós mesmos e a toda existência. Resumidamente, atingir a Alma da Consciência é exatamente “amar ao próximo como a si mesmo”. As transformações são lentas e graduais: ciclos dentro de ciclos. A resitência é ferrenha e violenta. O que pode advir deste período feito de ansiedade , somente o tempo dirá.