11 janeiro 2009

Os Novos Caminhos da Dança


Por Bernardo de Gregório *


* Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano formado pela em Medicina pela Escola Paulista de Medicina (UniFeSP), Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) e Expressão Cosporal pelo Instituto Euthonus de Psicologia, Educação e Arte. Professor e Orientador de grupos em Filosofia e Mitologia Gregas e Antroposofia. Dramaturgo, Diretor Teatral e Diretor de Arte para Espetáculos Culturais. Dirigiu os espetáculos: “Brasil 500 anos” (2000) da pianista Christina Myoen, “Eu, Medeia” (2004) do grupo de Dança-Teatro Evolución, “Concerto para um Amigunho” (2005) da pianista Christina Myoen, “Asas da Mente” (2006), “Confissões” de Márcia Gorenzvaig (2007) e “1 Minuto”, adaptação sua do original “Valsa No.6” de Nelson Rodrigues e do original “Daimon” de sua autoria (2008).






Quando se fala em Dança logo vêm à cabeça bailarinas de “tutu” dançando “O Lago dos Cisnes” com aquelas poses forçadas em cima de pontas de sapatilhas. Nada contra o Ballet Clássico (pelo contrário), mas será possível que em séculos de evolução a Dança não progrediu nada desde “O Quebra-Nozes”? Na verdade a Dança encontrou sim novos caminhos, por vezes bastante surpreendentes para os mais desavisados.

O raciocínio é o seguinte: um balé se propõe a apresentar uma história, passar um conteúdo, tal qual uma ópera ou uma peça de teatro. Não é assim com “O Lago dos Cisnes” ou com “O Quebra-Nozes”? Quando há uma bela cena de amor parece lógico que os movimentos sejam suaves e muito belos. Porém, quando há uma cena de tristeza ou raiva ou outro sentimento forte, por que os movimentos continuam os mesmos? Não deveriam se tornar sombrios, angustiados, horrorosos e assim por diante? Bem, foi este tipo de questionamento que uma coreógrafa alemã chamada Pina Bausch se fez. Em 1976 ela rompeu com as formas tradicionais, utilizando-se de ações paralelas, contraposições estéticas, repetições propositais e uma linguagem corporal incomum para a época.


Pina Bausch


Um novo movimento chamado Tanztheater (Dança-Teatro) já vinha surgindo na Alemanha. A história da Dança-Teatro alemã pode ser traçada a partir dos trabalhos de Rudolf von Laban e seus discípulos Mary Wigman e Kurt Jooss, nos anos 20 e 30. O termo era usado para descrever dança como uma forma de arte independente de qualquer outra, baseada em correspondências harmoniosas entre qualidades dinâmicas de movimento e percursos no espaço. Ainda que considerando a dança como uma arte independente, Laban desenvolveu seu sistema de movimento a partir de improvisações de Tanz-Ton-Wort (Dança-Tom-Palavra), nas quais os estudantes usavam a voz, criavam pequenos poemas, ou dançavam em silêncio. As peças de dança então criadas incorporavam movimento cotidiano, bem como movimento abstrato ou puro, em uma forma narrativa, cômica, ou mais abstrata.

Wigman fundou a Ausdruckstanz (Dança da Expressão). Ausdruckstanz foi uma rebelião contra o Ballet Clássico, buscando uma expressão individual ligada a lutas e necessidades humanas universais. Apareceu então o termo “Expressionismo Alemão”, baseado na idéia da Dança não como estética pura e irreal, mas como Expressão Corporal: o próprio corpo do bailarino é que vai nos contar a história, passar o conteúdo emocional em questão e não um libreto entregue na entrada do teatro. Já a Dança-Teatro de Jooss desenvolvia temas sócio-políticos através da ação dramática de grupo e da precisão da estrutura formal e de produção. O treinamento de dançarinos sob sua direção na Escola Folkwang, em Essen, Alemanha, combinava música, educação da fala, e dança, usando elementos do Ballet Clássico e as teorias de Laban de harmonia espacial e qualidades dinâmicas de movimento.

As teorias e práticas teatrais de Bertold Brecht, e seus temas sócio-políticos, são também relevantes à história da Dança-Teatro alemã. O Teatro Épico criou conceitos como os de gestus, o efeito de distanciamento, a técnica da montagem, e momentos cômicos inesperados. O conceito brechtiniano de Gestus ou Gebärde (gesto) enfatizava uma combinação de ações corporais e palavras como um gesto socialmente significante, não ilustrativo ou expressivo. Através de tais efeitos, o Teatro Épico de Brecht instigava o reconhecimento de situações cotidianas pelo espectador, e sua ação e tomada de decisão para mudá-las.



E foi na Folkwang School em Essen, com o diretor e coreógrafo Kurt Jooss, que Pina Bausch iniciou seus estudos de dança aos 15 anos. Com todo este back ground e tendo também bebido na fonte do Novo Mundo na Juilliard School e na Metropolitan Opera House de Nova York é que Pina Bausch assumiu a direção da Tanztheater Wuppertal. Essa mulher virou todo o mundo da Dança de pernas para o alto em seus 40 anos de trabalho. Ela se refere a uma "abordagem psicológica individual". Cada peça é um novo apelo para que o espectador "confie em si mesmo, se enxergue e se sinta".

Os dançarinos em cena não dançam: correm, gritam e riem, contam piadas. Alguém derrama água e joga terra no chão do palco. Piruetas velozes e pernas esticadas para o alto são coisas inexistentes numa encenação dessas. Mas seres humanos – pessoas vivas com medos, amor, tristeza e fúria. "O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move”, resume Pina Bausch o propósito de seu trabalho. A ousadia de vanguarda da jovem coreógrafa chocou inicialmente grande parte do público. O que ocorria no palco muitas vezes não era aquilo que constava do programa impresso. Os bailarinos não necessariamente dançavam, mas, no mais, pareciam fazer de tudo... O público expressava sua indignação vaiando ou retirando-se do recinto, sem esquecer de bater a porta. Até telefonemas anônimos com ameaças ela chegou a receber.

Com uma montagem de Brecht e Weill, Pina Bausch rompeu definitivamente com todas as formas tradicionais do teatro-dança em 1976. Ela se voltou para uma dança cênica obstinada e contundente, diretamente ligada ao teatro falado. Colagens de música popular, clássica, Free Jazz e enredos fragmentários culminaram numa nova forma de encenação. "Cada peça é diferente, mas profundamente ligada a mim", descreve Pina Bausch sua acepção de Dança-Teatro. Seu trabalho combina tristeza e desespero calado com "a expressão calorosa do amor à vida", descreveu uma crítica. "Os temas permanecem os mesmos; o que muda são as cores", explica a coreógrafa. Ao narrar, ela se mantém fiel a determinados princípios: ações simultâneas, marcação das diagonais do palco, repetições propositais e suspense dramático por meio de contraposições e progressões.


O uso de materiais reais e muitas vezes orgânicos sobre o chão do palco, como água, terra, cravos, ou sal, assemelha-se aos trabalhos interativos dos anos 60, mas em uma maior escala de produção. Diferente daqueles trabalhos interativos, as obras de Bausch não parecem buscar uma quebra da barreira entre a representação cênica e a vida. Pelo contrário, seus trabalhos incorporam movimentos e elementos da vida diária justamente para demonstrar que são tão artificiais quanto a apresentação cênica. E esta demonstração, como será visto posteriormente, é feita através da repetição de ambos os movimentos e palavras. Espontaneidade é uma experiência inesperada, imprevisível, que pode acontecer apenas através de tais repetições. Os elegantes trajes de noite e a maquiagem de seus dançarinos completam o grandioso quadro cênico. Em vez de vestirem simples roupas cotidianas, como nos trabalhos interativos dos anos 60, ou malhas sem distinção de gênero, como na dança abstrata, os dançarinos de Bausch vestem-se como que para um grande evento social. Seus figurinos e maquiagem determinam seus papéis sociais e sexuais, instigando a expectativa de um grande evento. Mas por muitas cenas, dançarinos apenas caminham, conversam, dançam pequenos movimentos, falam com a platéia, olham para nós, quebrando nossas expectativas e despertando nosso desejo por movimentos de dança.


Gestos são movimentos corporais realizados na vida diária ou no palco. No cotidiano, gestos são parte de uma linguagem do dia-a-dia associada à determinadas atividades e funções. No palco, gestos ganham uma função estética; eles tornam-se estilizados e tecnicamente estruturados, dentro de vocabulários específicos, como Ballet ou Dança Moderna Norte-Americana. Bausch utiliza ambos tipos de gestos — cotidiano e técnico. Em muitos casos, porém, gestos cotidianos são trazidos ao palco e, através da repetição, tornam-se abstratos, não necessariamente conectados com suas funções diárias. Quando um gesto é feito pela primeira vez no palco, ele pode ser (mal) interpretado como uma expressão espontânea. Mas quando o mesmo gesto é repetido várias vezes, ele é claramente exposto como um elemento estético. Nas primeiras repetições, o gesto gradualmente se mostra dissociado de uma fonte emocional espontânea. Eventualmente, as exaustivas repetições provocam sentimentos e experiências em ambos dançarino e platéia. Significados são transitórios, emergindo, dissolvendo, e sofrendo mutações em meio a repetições. Estas provocam uma constante transformação da dança teatro dentro da linguagem simbólica.

E não pára por ai: por que não quebrarmos paradigmas profundamente enraizados no público pelo Ballet? Por que a bailarina tem que ser aquela figura esbelta, longilínea e flutuante? Vamos colocar em cena bailarinas “gordinhas”, por que não? Bailarinos da terceira idade. Bailarinos com deficiência física! Bailarinos com aparências surreais, abstratas e que causem estranhamento. Neste sentido muito me impressionou uma apresentação de dança em que a bailarina não possuía ambas as pernas e do joelho para baixo usava botas de acrílico que estranhamente não possuíam conteúdo.

Sílvia Malena em “Eu, Medeia”

Talvez seja por tudo isso que um amigo meu define Dança-Teatro como “aquele negócio que a mulher convulsiona e a gente não entende nada”. Esta frase é para mim um pesadelo: qual o sentido de uma expressão Corporal que na prática não expressa nada e passa esta idéia bizarra para o público? É por causa deste temor em relação ao hermetismo enigmático que ronda a Dança-Teatro que toda vez que me proponho a dirigir um novo espetáculo de dança eu me desespero com a idéia de realmente expressar algo para o público. Foi por isso que quando a platéia se contorcia em suas poltronas enquanto soavam fortes os tapas que a bailarina se dava no rosto e no corpo na cena solo de “Eu, Medeia” que representava a loucura, eu me rejubilava no meu cantinho escuro lá no fundo. Se as pessoas podiam sentir toda a tensão da loucura e recebiam esta carga em cada tapa que ecoava, meu objetivo havia sido atingido!

Márcia Gorenzvaig em “Eu, Medéia”

Uniram-se a tudo isso, vários outros vieses pelos quais a Dança hoje caminha: a percussão corporal, as artes circenses (incluindo o Clown), atividades de ginástica e acrobacia, influências orientais do Yôga e da dança indiana e muito mais. A Dança, com isto tornou-se um infinito campo de pesquisa, ousando ir muito além dos passos com nomes em Francês. A Dança é um laboratório de pesquisas e serve como argamassa para fusão de todas as artes. Pude fazer experiências com o uso das plásticas no espetáculo “Confissões” em que Márcia Gorenzvaig dançava literalmente dentro de pinturas de Gustav Klimt que eram projetados no palco. Em “Asas da Mente”, a insistência sobre o tema “loucura” nos levou à dança da fala, à poesia e à fusão da música clássica ao Techno-Pop. Os vídeos e a trilha sonora nesta peça ajudam muito a compor o clima do espetáculo ou talvez sejam praticamente uma das personagens da peça: em algumas cenas, criam uma ambientação e, em outras, contracenam com os atores. No meu próximo trabalho pretendo unir o Canto Gregoriano à música eletrônica com gestos e formas do Oriente Médio e das Artes Marciais do Extremo Oriente. Tudo é possível e isto me parece ótimo. Mais que isto: extremamente saboroso!

Nilton Santos, Alex Lorenzo, e Nilson Santos em "Asas da Mente"


“Asas da Mente”





Luiz Ângelo Pizzonia e Patrícia Rizzo em “1 Minuto”

Márcia Gorenzvaig em “Confissões
Referências:


“Pina Bausch: Tudo é Dança”. Deutsche Welle.
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1682335,00.html

A Dança-Teatro de Pina Bausch: redançando a história corporal”. Ciane Fernandes.
http://www.unirio.br/opercevejoonline/7/artigos/4/artigo4.htm

“Confissões”. Márcia Gorenzvaig.
http://espetaculoconfissoes.blogspot.com/

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