Eu não tenho nada contra este
simpático trixter do nosso folclore, mas o deputado federal Chico Alencar, (PSOL
- RJ) e a vereadora de São José dos Campos Ângela Guadagnin (PT - SP)
tiveram a estranha idéia de criar o "Dia do Saci", com o objetivo de
resgatar figuras do folclore brasileiro, em contraposição ao "Dia das
Bruxas", o Halloween, tradicionalmente comemorado no dia 31 de
Outubro. O "Dia do Folclore", 22 de Agosto, já existe desde 1965 e me
parece no mínimo redundante haver um dia só para o Saci. Não há nenhuma
tradição que apoie este festejo nesta data; porém, em São Luiz do Paraitinga (SP) o
Dia do Saci já virou uma data típica local e é muito comemorado em uma festa que dura
quase duas semanas, tendo inspirado festejos similares em cidades vizinhas.
O Saci-Pererê tem sua origem presumida entre os indígenas da Região
das Missões, no Sul do país, de onde teria se espalhado por todo o território
brasileiro. Na Região Norte do Brasil, a mitologia africana o transformou em um
negrinho que perdeu uma perna lutando capoeira, imagem que prevalece nos dias
de hoje. Herdou também, da cultura africana, o pito, uma espécie de cachimbo e,
da mitologia europeia, herdou o píleo, um gorrinho vermelho usado para oferecer
poderes sobrenaturais. O Saci é considerado uma figura brincalhona, que se
diverte com os animais e pessoas, fazendo pequenas travessuras que criam
dificuldades domésticas, ou assustando viajantes noturnos com seus assovios,
bastante agudos e impossíveis de serem localizados. Assim é que faz tranças nos
cabelos dos animais, depois de deixá-los cansados com correrias; atrapalha o
trabalho das cozinheiras, fazendo-as queimar as comidas, ou ainda, colocando
sal nos recipientes de açúcar ou vice-versa; ou aos viajantes se perderem nas
estradas. O mito existe pelo menos desde o fim do Século XVIII.
Manter vivo nosso folclore é uma
muito boa idéia, mas a parte mais esdrúxula desta história toda está na
pretensa "contraposição" ao Halloween. Ora, por quê? A festa, que é popular nos Estados Unidos, chegou às
crianças brasileiras por meio de programas televisivos e filmes de cinema. Diz-se
comumente que o propósito é combater (mais) esta invasão cultural norte-americana,
mas é preciso que se diga que o Halloween, apesar de bastante festejado
nos países da América do Norte, não é de modo algum uma festa originária desta
parte do mundo.
O nome Halloween deriva de "All Hallow’s Eve", a Véspera do "Dia de Todos os
Santos", comemorado em 1o de Novembro. No entanto, a
origem do Halloween remonta às
tradições dos povos que habitaram a Gália e as ilhas Britânicas desde antes de 600
aC: os Celtas. No dia 31 de Outubro, a meio caminho entre o Equinócio de Outono
e o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte, é celebrado o "Samhain" (pronuncia-se
"Sou-ein") ou "Samonios", o Ano Novo
Celta, marcando o início da estação obscura da Deusa (a Natureza), que inicia
sua descida aos mundos inferiores. Nesta data, os espíritos dos mortos
voltam para visitar seus antigos lares e seus familiares, para buscar
alimento, se aquecer no fogo das lareiras
e para guiar os que precisavam seguir rumo ao Outro Mundo. Na hora do crepúsculo, o
véu que separa os mundos encontra-se mais fino, revelando em meio às brumas
sagradas, a divina presença dos elfos.
Samhain ocorre no pico do Outono. É o tempo do ano em que o frio
cresce e a morte vaga pela Terra. O Sol está enfraquecendo cada vez mais
rapidamente, a sombra cresce e as folhas das árvores estão caindo, numa
preparação para o Inverno que chegará. Essa é a última colheita, o tempo em que os
antigos povos da Europa sacrificavam seu gado e preservavam sua carne para o
Inverno, pois esses animais não podiam sobreviver em grande escala nesse
período do ano devido ao frio vindouro. Só uma pequena parte, os mais viris e
fortes, era mantida para o ano seguinte.
Samhain é a noite em que o Velho Rei morre e a Deusa Anciã lamenta
sua ausência nas próximas seis semanas. O Deus finalmente morre, mas sua alma
vive na criança não-nascida, a centelha de vida no ventre da Deusa. Isto
simboliza a morte das plantas e a hibernação dos animais, o Deus torna-se então
o Senhor da Morte e das Sombras. Samhain
é um festival do fogo e é a entrada para a parte sombria e fria da Roda do Ano.
É em Samhain que as fogueiras são
acesas para que os espíritos do outro mundo possam encontrar os caminhos para
partirem para o País de Verão. Oferecem-se alimentos para a passagem
dos espíritos e acende-se uma vela para iluminar seu caminho. A imagem da vela
dentro da abóbora tem esta origem.
Os praticantes de diversas
religiões neo-pagãs celebram ainda hoje o Samhain,
como por exemplo o Druidismo e a Wicca. Ele é celebrado no dia 31 de Outubro no
Hemisfério Norte e 1o de Maio no Hemisfério Sul e essa diferença
existe porque as estações são invertidas de um hemisfério para o outro e as
religiões celtas sempre privilegiam a Natureza e suas estações, ao calendário
patriarcal. Então surgem aqui questionamentos que ao mesmo tempo podem reconciliar
Saci e Halloween: o Dia do Saci, para
contrapor o Halloween, não deveria
ser então 1o de Maio? Ou por outra, por que não deixamos o Saci
ficar em 31 de Outubro e mudamos de vez o Halloween
para 1o de Maio?...
Agora, uma coisa é certa: tanto
Dia do Saci, quanto Halloween, não
podem ser comemorados apenas "por comemorar", porque em escolas acabam
ocupando o tempo de aulas importantes e não acrescentam nada na formação das
crianças. Não adianta celebrar uma data na escola que não represente nada para
a realidade do estudante. É preciso explicar como cada festa surgiu e
contextualizá-la para que os alunos criem uma identificação. Só assim a
comemoração fará sentido. Vista por este ângulo, a somatória das duas festas pode
ser muito útil: hoje, com a globalização, as crianças brasileiras também têm
acesso ao Halloween e isso lhes
permite construir conhecimentos a respeito do mundo e da forma como outras
crianças, que vivem em outras partes, brincam e divertem-se; mas a cultura
nacional não é descartada e o Saci é apresentado em aulas específicas que
tratam da cultura da infância brasileira: tradições, músicas, cantigas de roda,
brincadeiras, poesias e histórias.
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