Você já parou para pensar na
realidade da carne? Na existência objetiva do mundo orgânico? A despeito de
nossa íntima familiaridade com a existência no mundo através da matéria orgânica,
um simples afastamento é capaz de revelar um reação de profunda estranheza ou
até mesmo de um certo asco. O mundo orgânico existe através de fluidos e
tecidos vivos que em suma não deixam de ser nojentos. Coisas vivas (e quanto
mais "vivas" o forem) são nojentas. Coisas inanimadas (e quanto mais
inanimadas o forem) são tranquilizadoras. A morte, transição entre estas duas
existências, é marcada pela decomposição de tudo o que é orgânico de volta ao inorgânico
e esta passagem é a mais repulsiva de todas.
A grosso modo, a vida
resume-se neste planeta em cadeias de carboidratos, cadeias proteicas e algumas
cadeias lipídicas. Todas estas substâncias juntas, unidas ou não, criam este
aspecto viscoso, denso, amolecido e pegajoso. Se adicionarmos a isto o aspecto fundamental
empírica e psiquicamente ligado à vida, em especial à animal (do Latim "anima", "alma"), que é o
movimento, temos a imagem de carne que se move, arrastando-se sobre uma
superfície ou debatendo-se em convulsões. Esta é a imagem do
"anseio". Os vegetais não se debatem porque são autossuficientes,
vivem de luz: apenas abrem-se para o mundo e sorvem sua nutrição. Os animais precisam
encontrar energia fora de si e para tal é obrigatório que busquem, movidos pelo
anseio, pela falta, pela fome, em busca de substrato para manter-lhes a carne.
Sendo assim, a alma ("anima") é formada básica e
primordialmente pelo anseio: esta "falta" a que precisamos preencher.
O interior dos animais é aberto, há espaço, cavidades. Estas cavidades são
conhecidas como "luz" (apesar de na prática encontrarem-se nas trevas)
e precisam ser preenchidas: ar, água, comida, sangue... A Luz dos vegetais (esta
sim, pura e verdadeiramente luminosa) está no céu e caminha desde as estrelas
até suas verdes folhas. A luz dos animais está dentro e grita de fome,
impulsiona-os para o desejo. A voracidade é nossa marca. Mas não somos amebas,
não nos contentamos com incorporar (colocar para dentro do corpo) partículas carbo-lipo-proteicas.
Nós queremos mais! Nós nos preenchemos dos vazios dos instintos, de fomes
diversas: materiais e abstratas.
Os instintos humanos são esta
base da nossa alma, nossa porção animal. Os conceitos incorporados no que se
conhece hoje como "Os Sete Pecados
Capitais" são uma classificação de condições humanas identificadas
e comuns: gula, avareza, luxúria, ira,
inveja, preguiça e orgulho. Basicamente instintos da "carne", tão
normais e aceitáveis nos animais, comportamentos que favorecem a sobrevivência
da espécie (apetite, voracidade, sexualidade, ferocidade, competitividade, repouso
e autopreservação), tornam-se "vícios" no humano, porque passam a
responder não mais à Natureza, que os regula e harmoniza, mas ao ego, destacado
do todo, perdido de cego, guiado apenas por seu próprio anseio. Estas são as paixões que seduzem e põem a perder a
felicidade humana.
Sem a "carne", nada
disto ocorreria: não teríamos necessidades, não teríamos anseio, não teríamos
movimento. Seríamos plácidos, angélicos
e imóveis em eterna meditação contemplativa, abrindo-nos para o cosmo e
encarando a face de Deus, tal qual um vegetal abre-se para o sol. Mas estamos
aprisionados na carne num processo chamado "vida": precisamos
constantemente cuidar de nossa carne para que ela não ceda ao processo inevitável
de decaimento e apodrecimento que é o retorno ao estado inicial inanimado e inorgânico.
Este processo de decaimento era conhecido pelos alquimistas como "Nigredo" ("Processo Negro")
ou "Caput Corvi"
("Cabeça de Corvo") e englobava etapas bem definidas: Fermentatio, Putrefactio e Mortificatio.
Na fase inicial, há a fermentação, o inchaço, a desnaturação. Aqui a cor é
vermelha. Esta etapa é usada na fabricação de iogurtes e queijos, pães e bolos,
bem como de bebidas alcoólicas. Segue-se a fase que é a putrefação, cuja cor é
o negro propriamente dito: a decomposição e o decaimento da vida. Nas fábulas,
o negro indica sempre essa putrefação, tal como o luto, a tristeza, muitas
vezes a morte. E este negrume malcheiroso, é indispensável, pois como nos
adverte Nicolas Flamel,
"se não vier o negro, não virá o branco". Finalmente, somente quando extinto
todo o processo, chega-se à fase da mortificação, onde já não há material orgânico
a ser decomposto e toda a vida foi reduzida à sua base inanimada. Como a
revelação dos ossos, o branco se faz ver! O processo de transformação é associado
à ideia de morte, purificação e renascimento e só é possível através da
abnegação e do desprendimento. "Horridas
nostrae mentis purga tenebras, accende lumen sensibus" (purifica a horrenda escuridão
de nossa mente, ilumina a luz dos sentidos).
Na alma, a etapa do Fermentatio se faz ver pela exacerbação das
paixões e pelo aprofundamento da consciência justamente nos instintos animais,
cada vez mais primitivos. Negar e reprimir não nos permite a evolução. Com uma
correlação direta com a fermentação que produz álcool etílico, a etapa vermelha
é uma embriaguez total, uma possessão dionisíaca, uma vitória inicial plena da
carne sobre a razão. Alimentemos a alma com pão e com vinho (Fermentatio) e deixemos aflorar o animal
em cada um, como um momento de confissão e catarse. Liberação total, mas não
eterna. Em seguida, estes fluidos orgânicos passam a um processo de
apodrecimento e decaimento franco, destruindo e levando consigo tudo o que é
velho e desvitalizado. Chega-se ao Putrefactio,
momento que não é nem um pouco simples ou agradável, em que se deve encarar a Natureza
em sua face mais cruel: a carne, como deusa enfurecida, a Mãe
Devoradora! Findo o processo, mas somente se o deixarmos ser conduzido até as
últimas consequências, ele extingue-se a si mesmo e nos revela a fase branca: Sophia celestial que se apresenta derradeira do Mortificatio. Mas não se iluda: interromper o processo pela metade
é pior do que jamais tê-lo iniciado. É preciso não ceder ao medo ou à culpa,
não se deixar enganar pelo ego que se recusa a morrer.
Este é o único caminho
possível para a purificação da carne: o que passa pela anulação do ego. Note:
não pela aniquilação do ego, que seria psicose, loucura; mas sim, por sua adequação,
sua domesticação, para que deixe de ser o centro do mundo (egocentrismo) e se
torne, como sempre deveria ter sido, um instrumento de uma Consciência maior. Desta
forma, perdido irremediavelmente nosso vínculo com as forças harmonizadoras da
Natureza, adquiramos nós novas forças reequilibradoras vindas de mundos
superiores. A isto os orientais dão o nome de "Moksha" ("Liberação"):
o que era "Kama", o desejo
mais ardente, o desfrute material dos sentidos, volta-se para a pureza da luz
("Sattva") e, como um vegetal,
permite-se iluminar-se ("Buddha").
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