A Primeira Década do Século XXI
Bernardo de Gregorio
“E então, finalmente aqui estamos nós no começo de uma nova era! No começo de um novo mundo. E daí? Por onde é que a gente começa? Como é que vamos recomeçar? E mais uma vez hoje é o dia: aqui e agora. Então, p’ra onde é que a gente vai? P’ra que servem os dias? Para nos acordar e para se interporem entre infinitas noites”. (Laurie Anderson)
Há 150 anos iniciamos uma busca frenética por algo que nem mesmo nós sabemos ao certo o que poderia ser. Deste processo, tem resultado mais consciência. Adquirimos mais consciência sobre nosso corpo, sobre a natureza que nos cerca, sobre nossas origens, nossa mente, nossa condição, nossa sociedade e nosso planeta. Pensem em nomes como Freud, Darwin, Einstein, Marx, Weiner, Fleming, Watson & Crick, Bohr, Ford, Gandhi, Gurdjieff e entenderão a que me refiro. Dennis Kingsley afirma que o Século XX foi um tempo em que nos perguntamos “o que existe além da vida?”, “o que há por detrás da matéria?”, “o que se esconde por debaixo de nossa mente consciente?”, “o que significa a vida?”.
Paralelamente a esta busca radical, um imenso salto tecnológico ocorreu e de uma hora para outra, em termos históricos, nos vimos com ferramentas que nos abriram possibilidades infinitas e inimagináveis até então. O quantum de evolução tecnológica que se observa hoje a cada 2 anos, equivale a todo o acúmulo de conhecimento anterior da humanidade. Isto significa que atualmente todos os dias é descoberta a roda. Porém, existe um equilíbrio muito tênue entre as vantagens e as desvantagens que o avanço da tecnologia traz para a sociedade e a principal questão sempre é “o que vai ser feito com esta tecnologia?”. Historicamente sabemos que um igual número de aplicações positivas e negativas sempre vem no pacote de uma nova tecnologia.
E assim chegamos ao famoso Século XXI e assim passou a primeira década do famoso século*. Famoso, porque muitas projeções e esperanças foram nele depositas, justamente por causa dos avanços cognitivos e tecnológicos, algo como um “Efeito Jetsons”. A Ficção Científica tornou-se um arauto da Nova Era e durante todo o Século XX anunciou este “admirável mundo novo” do porvir. “Oh! Maravilha! Que divinas criaturas temos aqui! Como é bela a espécie humana!”. Inacreditável. Inacreditável e impossível. Sim, porque estes primeiros 10 anos nos revelaram que o Século XXI não é tão maravilhoso assim e a Humanidade corre sobre o fio da navalha de seu próprio destino.
Tudo ia até que muito bem até a fatídica data de 11 de Setembro de 2001. Apenas pouco mais de 8 meses do novo século haviam se passado e já se desferiu o primeiro grande golpe contra nosso amado “Efeito Jetsons”. Depois deste dia, nada mais seria seguro e ninguém mais seria confiável: nada nem ninguém acima de qualquer suspeita. Seguiram-se muitas datas. Datas como 1 de Fevereiro de 2003, 26 de Dezembro de 2004, 29 de Agosto de 2005, 24 de maio de 2006, 15 de Setembro de 2008. Ok, eu posso ajudar. Na ordem: atentados terroristas contra as Torres Gêmeas de Nova York e o Pentágono em Washington, explosão do Ônibus Espacial Columbia, tsunami no Oceâno Índico, Furacão Katrina em Nova Orleans, lançamento do documentário “Uma Verdade Inconveniente” de Al Gore, crise mundial do crédito. E cada um destes eventos que ocorreram nestas datas, não ficaram circunscritos a elas, mas cresceram e se multiplicaram pelo mundo, repetindo-se inúmeras vezes e mantendo o clima ameaçador deste novo século. Estes eventos foram apenas, cada um, um episódios piloto de sua própria série.
Tudo parece estar se encaminhando de uma maneira errada e os descaminhos não são apenas externos: algo de errado ocorre também dentro das pessoas. A materialização do pesadelo de Orwell na forma do Big Brother marcou esta década de forma indelével. Câmeras espalhadas por todos os lugares, olhares fiscalizadores que nos acompanham, olhos no céu sob forma de satélites espiões, Google Earth. Rastreamento eltrônico de cada transação monetária, de cada mensagem enviada e recebida, de cada imagem processada. Redes mundiais de computadores, redes sociais virtuais, redes de comunicação instantânea, Wikipedias, Wikileaks. Nada escapa, nada está a salvo.
E como cada um de nós tem lidado com tamanha revolução? Como será possível que lidemos com a revolução que estáo por vir? Imaginemos a vida de uma pessoa comum há uns, digamos, dois ou três séculos passados: um indivíduo vivia em regiões tranqüilas e isoladas, longe dos grandes centros urbanos e tinha a necessidade diária de conviver com seus familiares em constante troca afetiva de ajuda mútua. Havia também a necessidade de exercício físico constante, como por exemplo, para cortar lenha, cuidar de seus animais domésticos e de sua moradia, sem quase nenhuma facilidade tecnológica para auxiliá-lo nestas tarefas. O próprio trabalho rural dos indivíduos era o fator responsável pela integração do Ser Humano à natureza. A Espiritualidade, seja de qual origem fosse, era a linha mestra das vidas e era apresentada de forma uma e indiscutível. O acesso à informação era absolutamente restrito e ineficaz, o que obrigava o indivíduo a ignorar os acontecimentos que não estavam rigorosamente ligados à sua vida pessoal e da pequena comunidade a que pertencia. Nosso sistema emocional foi feito, por assim dizer, para este tipo de vida pacata e rural e não para a vida que temos hoje.
Nosso sistema cognitivo consegue dar conta desta avalanche de informações: entendemos facilmente que houve um terremoto no Japão, um atentado terrorista nos Estados Unidos e um bombardeio no Oriente Médio. Mas o que podemos fazer com a carga emocional que cada uma destas notícias contém? Somemos a isto o stress que a pressão da propaganda nos impõe: temos que ter o tal carro do ano, usar a tal roupa de grife e dar a nossos filhos o tal brinquedo eletrônico que ele viu na TV e raramente nossa renda acompanha os gastos destas "necessidades". Para piorar, não conseguimos ter o controle de nossas atividades diárias: normalmente exigem-se de cada um mais tarefas do que seriam possíveis nas 24 horas de um dia. Nos únicos momentos de relaxamento e descontração, dedicamo-nos a receber mais informações cognitivo-emocionais conflitantes, quando nos expomos a um filme, acessamos a Internet ou simplesmente nos anestesiamos com álcool e drogas. O contato interpessoal, vital para qualquer Ser Humano, tornou-se cada vez mais excepcional e de baixíssima qualidade, permeado por stress e ansiedade. O contato frutífero com o Inconsciente através das atividades criativas, artísticas ou através dos sonhos e das estórias mitológicas e folclóricas, perdeu-se em meio à confusão da modernidade. O exercício físico somente é possível mediante compromissos agendados em academias, que acabam trazendo mais informações desnecessárias e mais exigências impostas pela sociedade de consumo.
O resultado de tudo isso é que nós adoecemos, a sociedade adoeceu, o planeta adoeceu. Inauguramos a segunda década do Século XXI doentes. A necessidade de uma mudança profunda que traga a possibilidade de uma cura se impõe e já extrapola o ponto em que seqüelas seriam evitáveis. Este é o impasse no qual nos encontramos neste momento. “Portanto, é com pesar que verificamos que a humanidade, em pleno limiar do Século XXI, está trocando a ética, a honradez, a solidariedade. Trocam-se os valores humanos pelo supérfluo, pelo descartável, pelo irrisório e ilusório”, afirmou no fim do ano passado o articulista do Jornal da Manhã Valter Machado da Fonseca. Ainda bem que só faltam 90 anos para o Século XXII.
“Ah, meus irmãos! Ah, minhas irmãs! P’ra que servem os dias? Os dias são onde vivemos. Eles fluem e fluem... Eles vêm, correm, escorrem e se vão... Não dá p’ra saber exatamente onde é que eles começam e onde é que eles vão parar. Ah, todos vocês meus irmãos! Ah, todas as minhas irmãs há muito perdidas! Por onde é que a gente começa? Como recomeçamos? Como é que vamos recomeçar?”. (Laurie Anderson)
* É comum que se ouça que a primeira década do século 21 e do terceiro milênio terminou dia 31 de dezembro de 2009. Está errado. Na verdade, a primeira década do século 21 terminou somente no último dia de 2010. É simples fazer as contas: a primeira década da Era Cristã começou em janeiro do ano 1 d.C. – não houve ano zero. Portanto, esta década terminou no fim do ano 10 d.C. Toda década começa em ano com final 1 e termina no primeiro ano com final zero.
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