20 agosto 2010

Crise? Que Crise?



Bernardo de Gregorio
Psiquiatra e Psicoterapeuta





Hoje uma pessoa me disse que estava realmente em crise, mas em uma crise saudável. “Como assim?”, perguntei. E ela respondeu: “começando a recomeçar, fazendo as coisas por mim, tomando atitudes, falando o que penso e o que realmente quero, me colocando perante a vida e aquilo que é melhor para mim agora”. E eu digo que ela está certíssima: este é o tipo de crise que todo mundo deveria ter. No Brasil nos acostumamos com a palavra “crise” sempre associada a uma situação crônica, arrastada e depressiva. Porém, a palavra "krísis" em Grego significa "a hora de mudar", "momento decisivo". Literalmente “krísis” é “discernimento”, “luta”, “decisão” e “resultado”. Ou seja: crise pode ser muita coisa, mas não é algo arrastado, penoso e depressivo.

A Medicina Grega também se valia da palavra “krísis”, com mais ou menos o mesmo significado. O médico recebia um doente e com ele procedia à “anamnesis” (ou seja: “rememorar”, “lembrar”, “anamnese”), quando se procurava entender o processo pelo qual o indivíduo perdeu se equilíbrio natural e tornou-se doente. Em seguida, era feito o “diagnostikon” (ou seja: “ ver através”, “perceber através”, “diagnóstico”), quando o desequilíbrio era localizado e compreendido. O médico aguardava então a evolução da doença, instituindo ou não algum tratamento que colaborasse com o transcorrer do processo (“pródromos”), até que o momento crítico se apresentasse: o momento decisivo (“krísis”). Na crise o médico procedia ao ato da cura que poderia ser o uso de uma substância química (“phármakon”, ou seja: tanto “veneno”, quanto “remédio”), um ato mecânico com as mãos (“kheirourgía”, ou seja: “cirurgia”) ou ainda ambos associados. Depois da crise, que é o desfecho, a doença estava superada e apenas restava uma longa e importantíssima fase de recuperação caracterizada pelo que se conhecia em Grego como “therapeia” (ou seja: “cuidar com carinho”, “terapia”). Neste período os médicos ouviam os sonhos de seus pacientes e acompanhavam a evolução através do significado oculto que percebiam neles, indicavam uma série de atividades físicas e orientações alimentares chamados “díaites” (ou seja: “dieta”) e incentivavam mudanças nos hábitos que levaram aquela pessoa ao desequilíbrio, a “metamorphosis” (“transformação”).

O Chinês se escreve não propriamente com letras, mas com pequenos desenhos simplificados que se chamam “ideogramas”. Há um ideograma chinês que significa “crise” e que é formado pela junção dos ideogramas que querem dizer “perigo” e “oportunidade”. Para quem souber inovar, há um oceano de oportunidades descortinado pela crise. O perigo ronda, faz parte do processo, é certo; mas não se deve parar frente ao perigo, comentam os chineses. Uma crise é então o “ponto de mutação” e o “Ponto de Transição” (ou o "Retorno") é também o nome de um dos hexagramas do I Ching. I Ching ou Livro das Mutações, é um texto clássico chinês composto de várias camadas, sobrepostas ao longo do tempo. É um dos mais antigos e um dos únicos textos chineses que chegaram até nossos dias. Para o pensameno chinês, não há o que mude, há apenas o mudar e a mutação seria o caráter mesmo do mundo. Mas a mutação é, em si mesma, invariável: sempre existe. O I Ching é então composto por 8 trigramas (ou seja: “conjuntos de 3 linhas”) que se combinam 2 a 2 para formar 64 hexagramas (ou seja: “conjuntos de 6 linhas”). Um destes hexagramas é o “Ponto de Transição” (“Fu”). O hexagrama é formado apenas uma linha “yang” firme abaixo que se segue de 5 linhas “yin” maleáveis acima. O ponto de transição é sugerido pelo fato de que após as linhas obscuras expulsarem do hexagrama as linhas luminosas acima, uma outra linha luminosa surge novamente, embaixo. O tempo das trevas passou. O solstício de inverno traz a vitória da luz.

RETORNO.

Sucesso.
Saída e entrada sem erro. Amigos chegam sem culpa.
Para adiante e para trás segue o caminho.
Ao sétimo dia vem o retorno.
É favorável ter aonde ir.


Após uma época de decadência vem o ponto de transição. A luz poderosa que tinha sido banida retorna. Porém, este movimento não é provocado pela força. Com devoção, o movimento é natural e surge espontaneamente. Por isso a transformação do antigo também torna-se fácil. O velho é descartado e o novo, introduzido. Ambos os movimentos estão de acordo com as exigências do tempo e, portanto, não causam prejuízos. Formam-se associações de pessoas que têm os mesmos ideais. Como tal grupo se une em público e está em harmonia com o tempo, os propósitos particulares e egoístas estão ausentes, e assim erros são evitados. A idéia de retorno baseia-se no curso da natureza. O movimento é cíclico e o caminho se completa em si mesmo. Por isso não é necessário precipitá-lo artificialmente. Tudo vem de modo espontâneo e no tempo devido. Esse é o sentido do céu e da terra. Todos os movimentos se completam em seis etapas, e a sétima traz o retorno. Deste modo, o solstício de inverno, com o qual tem início o declínio do ano, ocorre no sétimo mês após o solstício de verão. Do mesmo modo, o nascer do sol ocorre após o crepúsculo. Assim, o estado de repouso dá lugar ao movimento. Na China, o solstício de inverno foi sempre celebrado como a época de repouso do ano, costume que se conserva até hoje, no período de descanso do ano novo. No inverno, a energia vital, simbolizada pelo trovão, "O Incitar", encontra-se ainda no interior da terra. O movimento está em seus primórdios e por isso deve-se fortalecê-lo através do repouso, para que não se dissipe num uso prematuro. Esse princípio básico, de fazer com que a energia nascente se fortifique através do repouso, aplica-se a todas as situações similares. A saúde que retorna após uma doença, o entendimento que ressurge após uma discórdia, enfim, tudo o que está recomeçando deve ser tratado com suavidade e cuidado, para que o retorno leve ao florescimento.

Estas épocas de "reencarnação" são fundamentais para nosso crescimento. Em Zoologia chama-se “ecdise” ou "muda" ao processo de mudança do exoesqueleto nos animais que apresentam este modo de crescimento. Animais como os besouros e os caranguejos, por exemplo, têm uma carapaça forte que envolve seus corpos, protegendo-os e propiciando movimento. As asas e outros apêndices dos artrópodes são formadas por expansões deste exoesqueleto. Apesar das vantagens, o exoesqueleto configura-se como fator limitante ao crescimento dos animais, que necessitam de realizar a ecdise, o processo no qual o animal deixa o seu exoesqueleto para aumentar de tamanho. A capacidade de mudar o exoesqueleto é uma estratégia evolutiva com várias vantagens, principalmente para animais pequenos que vivem na água ou que voam. Além de ser a única maneira possível para estes animais crescerem, a possibilidade de mudar a “pele” permite-lhes também mudarem de forma, as metamorfoses que permitem que o animal se adapte a novos ambientes. A seguir à muda, o animal apresenta um exoesqueleto mole durante algum tempo, sentindo-se frágil e exposto. Porém logo o novo esqueleto se torna firme e confortável. Nós humanos passamos pelo exato mesmo processo, porém em nossas almas e estas transformações apenas podem se dar nas crises.

Ivan Martins disse certa vez: “reencarnar é bom! Eu mesmo já fiz isso três vezes, na mesma vida“. Esta pessoa que hoje me falou de crise continuou: “reaprender a viver é mais difícil que aprender: os vícios de comportamento, a mudança de valores... Mas o importante é saber que estaremos mais felizes! O prazer que sentimos quando conseguimos vitórias é muito bom! Mesmo com choros, tristezas, frustrações... Quando coloco em palavras, parece tão fácil e com certeza não é! Mas quem falou que a vida era fácil?”.