21 agosto 2006

“A taverna se chamava Cannibal Café, e o letreiro ostensivo anunciava em letras vermelhas, em inglês: 'adoraríamos ter você para jantar’ ”.


Jostein Gaarder, “Maya”.







“A fantasia do técnico de computadores alemão Armin Meiwes, 42, era devorar alguém. Ele a realizou em março de 2001, ao matar e comer um homem que atendera a seu anúncio na internet pedindo vítimas. Meiwes começou a ser julgado por assassinato. O réu disse que sites com nomes como ‘Cannibal Café’ reuniriam ‘centenas’ de pessoas dispostas a devorar alguém ou a serem devoradas. Nos 12 meses em que os anúncios de Meiwes estiveram na rede, 430 pessoas responderam” (Folha de S.Paulo).
“O julgamento do homem que ficou conhecido como o ‘Canibal Gay’, está lançando luz sobre uma nova evidência: a de que este não é um caso isolado, existindo uma verdadeira rede de canibais e de promoção do canibalismo gay em todo o mundo.” (GLS Planet NEWS).
O que pode levar pessoas aparentemente bem adaptadas à sociedade a realizar fantasias sexuais deste tipo? Pior: o que significa o fato de tantas pessoas em todo o mundo compartilharem este tipo macabro de fantasias sexuais? Estaria o canibalismo atualmente ligado a algum fenômeno social específico, alguma deturpação típica de nossa era? O canibalismo faz parte da História desde os primórdios da Humanidade e existiram muitas culturas em que ele foi considerado sagrado, fonte de poderes sobrenaturais, procedimento tabu e até mesmo método eficaz de saúde pública. A idéia principal contida em todas as formas de canibalismo ao longo da História é que de alguma forma a vítima de um sacrifício ritual canibal viria a ressuscitar no ser daquele que consome sua carne e, ao que parece, esta mesma idéia foi compartilhada por Meiwes.
Esta idéia arquetípica está presente na mente de todos os Seres Humanos e pode ser facilmente depreendida com uma simples observação do ritual cristão da Missa, por exemplo, como o explicitou o próprio Meiwes ao se referir à comunhão. Quem não reconhece o contexto antropofágico explicito na frase: “quem comer de minha carne e beber de meu sangue terá a Vida Eterna”? Tal qual ocorria nos sacrifícios rituais primitivos comuns no período Neolítico da Pré–História, Jesus é simbolicamente morto a cada Missa, seu corpo é esquartejado no símbolo do pão dividido e, juntamente com seu sangue, representado pelo vinho, ingerido por toda a comunidade de fiéis reunidos para a repetição ritual da Santa Ceia. A crucificação de Cristo é a confirmação deste simbolismo.
“O nosso amor é como o grão: tem que morrer p’ra germinar...Nasce e morre trigo,vive e morre pão.” (Gilberto Gil, “Drão”). Primitivamente este ritual de sacrifício humano seguido de canibalismo estava diretamente ligado ao mito agrícola: o sacrifício do grão à terra no Outono e seu rensacimento na Primavera; o sacrifício do trigo na colheita e seu renascimento como alimento que sustenta a vida do clã. Este ciclo da terra era representado pela entidade divina da Natureza, representada pela Grande Mãe. Estes ritos ficaram marcados em todas as culturas humanas sob diversas formas de festividades e deram origem no Cristianismos a quatro festas principais (tomando–se como base as estações do Hemisfério Norte): a Páscoa, como a celebração do renascimento na Primavera; São João, o dia do meio do Verão, como o solstício de Verão (Midsummer Day); Finados, o Dia dos Mortos, como a celebração do sacrifício do grão no plantio dos campos (Halloween) e o Natal como o solstício de Inverno e o aparecimento da esperança.
Toda a idéia da agricultura surgiu daí: se entregassemos à deusa da terra nossas sementes e confiássemos no Ciclo da Mãe, ela nos recompensaria com novas plantas e novos grãos. E de fato, assim é: apareceu assim a idéia de sacrifício (ofício sagrado). Quando fizéssemos nossas colheitas, uma parte das dádivas da Mãe seria separada para o sacrifício: o melhor grão para a Grande Mãe. Este melhor grão não poderia ser tocado por mãos humanas e não serviria de alimento, mas seria devolvido à terra, como prova de confiança e como esperança de um renascimento no futuro. E assim era feito, no final do outono. Durante todo o inverno o clã sobrevivia dos grãos estocados (aveia, sevada e trigo), das frutas secas ou tornadas compotas (maçãs, cerejas e morangos) e dos líquidos sagrados da Mãe (leite, mel e sangue). Na primavera a magia da Natureza se fazia ver no nascimento dos bebês e no crescimento dos campos verdejantes, nas temperaturas amenas e no florescimento dos vegetais. Os verdes campos davam lugar durante o verão aos campos dourados que aguardavam a ceifa. No equinócio de outono, numa noite de lua nova, quando a lua tomava o aspecto da foice em tons avermelhados no céu logo após o por do sol, o trigo era ceifado e o grão para o próximo sacrifício era separado pela matriarca. Concomitantemente um homem era sacrificado à deusa e sua carne e seu sangue consumidos pela tribo.
Em tribos primitivas africanas onde o canibalismo é tão comum e concreto a ponto de perpetuar certas doenças transmitidas pelo consumo de cérebro humano, como o Kuru–Kuru (Doença de Kreutzfeldt–Jacob), a prática da antropofagia nunca teve outra conotação diferente da ritualística e religiosa. Na maioria das tribos a idéia é que ao se ingerir os músculos, o coração ou o cérebro de um guerreiro, companheiro ou inimigo, sua força, sua coragem ou sua inteligência seriam desta forma adquiridas. É claro que muitas vezes o vírus causador da encefalite era a única coisa que era transmitida... Entre os primeiros habitantes do Egito, antes do aparecimento da cultura funeral da mumificação e da idéia da ressurreição dos mortos, havia o costume de se devorar os restos mortais dos parentes, como forma de perpetuação de suas vidas através de seus descendentes.
Todos estes atos canibais sempre estiveram envoltos em alto grau de respeito, tradicionalismo, religiosidade e misticismo. Por outro lado, o gosto pela carne humana como simples iguaria ocorreu e ocorre em diversas tribos primitivas na América e Oceania, sem que seja visto nesta prática nenhum problema maior do que o consumo de qualquer outra proteína animal. Nestes casos, porém, evitava–se, dentro do possível, o consumo de carne humana oriunda de parentes e amigos, preferindo–se os corpos de inimigos capturados. Casos de antropofagia puderam ser registrados também em situações onde havia uma grande privação, como na Revolução Maoísta na China, quando camponeses esfomeados invadiam propriedades rurais não em busca suprimentos (que não mais existiam), mas em uma desesperada tentativa de encontrar uma boa fonte de proteínas na carne do dono do sítio vizinho.
Na cultura ocidental moderna, o canibalismo é um dos últimos tabus ainda vigentes. A idéia de ingerir carne humana parece a qualquer pessoa civilizada, repulsiva e degradante. Mesmo assim, o canibalismo povoa o imaginário coletivo, sendo freqüentemente representado em livros e filmes, desde a distante imagem do vampiro, até a crudeza da ação de psicopatas, como ficou imortalizado por Anthony Hopkins na série de filmes sobre “Hannibal” (O Silêncio dos Inocentes, Hannibal, The Cannibal e Dragão Vermelho). O autor de “O Mundo de Sofia”, Jostein Gaarder, como em seus livros anteriores, em “Maya” parte de uma estrutura ficcional muito bem arquitetada para armar um mundo de reflexões e curiosidades sobre diferentes campos do conhecimento humano. Na obra, ele convoca o leitor para uma viagem pelas origens do Universo e da vida, numa narrativa que, através da compreensão da evolução das espécies, busca respostas para uma de nossas perguntas eternas, como “quem sou eu”. Em uma divertida referência a um simpático café localizado na ilha tropical caribenha de Belize, lê–se a frase: “a taverna se chamava Cannibal Café, e o letreiro ostensivo anunciava em letras vermelhas, em inglês: ‘adoraríamos ter você para jantar’”. Este restaurantezinho para adeptos do mergulho e demais esportes aquáticos realmente existe e, evidentemente, não serve carne humana, mas iguarias vegetarianas ou feitas com frutos do mar. Porém, a idéia do canibalismo que o nome sugere, levou à fama tanto o restaurante, quanto a frase: músicas foram criadas em diversas línguas sobre o tema e muitos sites da Internet tomaram de empréstimo o mesmo nome. Isso quer dizer que um fetiche foi criado em torno do Cannibal Café, demonstrando que onde há tabu, há certamente o fetiche que o acompanha.
Compreender que a fantasia de Meiwes poderia ser até mesmo ser considerada como um lugar comum, tendo em vista esta visão mais panorâmica do tema, é bem possível. Compreender quais situações o levaram a colocar em prática esta fantasia já é bem mais difícil, mas claramente inteligível, se levarmos em conta que a psicopatia ligada a crimes hediondos é relativamente bastante freqüente. Porém compreender quais as razões que levaram Brandes a alegremente se oferecer como refeição do “Canibal Gay”, chegando até mesmo a saborear o próprio pênis na companhia de seu algoz, isso já bem mais complexo. A única explicação que me parece plausível para tal comportamento evidentemente suicida é a realização pessoal de forma psicótica de um evento simbolicamente correlato que vem sendo repetido infinitas vezes na sociedade globalizada atual: o canibalismo consentido. Explico: não é canibalismo o que as nações ditas desenvolvidas exercem sobre as ditas nações subdesenvolvidas, quando obrigam política e economicamente que as populações destas se mantenham envoltas em pobreza, doença e morte para sustentar os luxos supérfluos daquelas? Isso não é ignorado por todos e coletivamente consentido? Não é canibalismo quando uma mega–empresa multinacional simplesmente açambarca e devora empresas menores obrigadas por lobby e dumping a docilmente se entregarem a esta prática antropofágica? Isso não é ignorado por todos e coletivamente consentido? Não é canibalismo quando as classes dominates mantêm na ignorância e na pobreza as classes inferiores que nada mais fazem do que ingenuamente doarem sua força de trabalho e seu sangue num banquete vampírico? Isso não é ignorado por todos e coletivamente consentido? Pois não é canibalismo quando um dependente de drogas psicotrópicas (e incluem–se aqui o cigarro e o álcool) alegremente entrega sua consciência, seu corpo e sua vida para alimentar a indústria do tráfico internacional? Isso não é ignorado por todos e coletivamente consentido?
Ora: o mundo é um grande Cannibal Café! O erro de Brandes foi o de tomar como literal a metáfora canibal e se entregar alegremente àquele que o devoraria. Na verdade, as demais formas de canibalismo aqui descritas podem ser bastante mais sutis, porém, na prática, são igualmente literais. Seria muito bom pensar sobre isso e compreender mais profundamente o evento canibal que ocorreu na Alemanha.



Por Bernardo de Gregório
(Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano)

Um comentário:

Bernardo de Gregorio disse...

O canibal alemão
por Alcino Leite Neto


O caso do técnico de computação que devorou um engenheiro na Alemanha é assustador. Mas é também extraordinário e, mais ainda, inédito -daí as dificuldades da Justiça para julgá-lo.

Como definir a culpa do canibal, uma vez que o crime resultou de um acordo mútuo entre o reú e a vítima? Devemos acusá-lo de homicídio ou de colaboração no suicídio do outro? Vamos tratá-lo como um insano, mesmo se ele não apresenta qualquer distúrbio psíquico e tudo foi planejado racionalmente com a participação da vítima?

É impressionante que o canibalismo se manifeste assim numa sociedade altamente desenvolvida. Mais espantoso, contudo, não é o fato de um sujeito comer carne humana -já se ouviu falar de episódios parecidos nas últimas décadas. O extraordinário é a comilança ter sido consentida pela própria vítima. Ou seja, havia um desejo de comer o outro, e do outro de ser comido -e não estamos no campo das metáforas.

Talvez este seja o primeiro caso registrado na história humana de canibalismo consentido. O primeiro caso de canibalismo que não pode ser enquadrado como tradição ritual de uma coletividade (como foi entre certas tribos da América pré-colombiana), como consequência de uma escassez de alimentos (como ocorreu com aqueles famosos "sobreviventes dos Andes"), como manifestação de crueldade ou resultado da loucura.

Este episódio inédito de canibalismo contratualista complica a vida não apenas dos juízes e advogados, mas também a interpretação de psiquiatras, psicanalistas, sociólogos e antropólogos que por acaso queiram refletir a respeito. Os melhores dentre eles mereceriam ser ouvidos sobre esse fato, que é muito mais do que uma simples crônica policial.

É certo que a devoração só pôde ocorrer porque os envolvidos tinham confiança extremada na sua autonomia como indivíduos, como se para eles, no intuito de realizar seus desejos, de nada valessem os tabus sociais, os pecados religiosos, os constrangimentos morais e os impedimentos da lei.

Terrivelmente livres, eles, no entanto, em nenhum momento, parecem ter investido sua atitude de qualquer dimensão transgressora, fazendo da devoração um ato de rebeldia existencial ou de afronta ao mundo social.

Ao praticar o canibalismo, eles não se baseavam também em nenhuma doutrina, seita ou crença compartilhada por um e outro -a princípio queriam apenas realizar fantasias psicológicas mutuamente correspondidas.

Terrivelmente banais, o técnico de computador e o engenheiro planejaram tudo como se organizassem uma aventura sexual pequeno-burguesa de fim de semana, com a ajuda da internet, seguindo as conveniências e as comodidades da época.

Uma oferta foi lançada num chat na rede, um outro a fisgou, um encontro foi marcado, os dois se reuniram numa casa, transaram -e começou enfim o ritual.

Ritual ao mesmo tempo de características muito remotas e muito contemporâneas, pois foi precedido de um contrato informal entre indivíduos livres, acompanhado de um registro voyeurista em vídeo e confirmado por uma prova testamentária da vítima, onde ela expressava sua vontade de ser devorada.

Depois da transa, a vítima teve então o seu pênis extirpado, o qual foi servido para os dois amantes. É sem dúvida desagradável imaginar a dupla sentada à mesa, um dos dois exangue, ambos tentando mastigar um falo humano, a peça de carne por onde começou o banquete.

Mas é justamente aí, neste momento, que entramos na esfera do mito. A cena, por terrível que seja, repete a intensidade ritual de cerimônias arcaicas, enterradas pela história, nas quais coincidem exemplarmente erotismo, violência, sacrifício e antropofagia -tudo isso um prato cheio para as análises de Bataille, Pasolini e Girard.

Há quem veja nesse acontecimento sombrio apenas o crime, a degradação e o horror. Outros, porém, poderão enxergar aí a manifestação paroxística de uma nostalgia do sagrado em plena Alemanha pós-industrial -indivíduos exaustos com sua solidão psíquica tentando realizar um esforço sinistro, dessublimado e desmetaforizado, de comunhão total com o outro, talvez com todo o gênero humano em crise, por meio do canibalismo.


Este texto foi publicado originalmente na “Pensata”, do site “Folha Online”, do jornal “Folha de S. Paulo".
Alcino Leite Neto
É jornalista, editor de "Trópico" e editor de "Domingo" da "Folha de S. Paulo", jornal onde já exerceu as funções de correspondente em Paris, editor do "Mais!", da "Ilustrada" e de "Especiais".